O GLOBO - 09/12
— Uma amante só? — interrompeu Alma Roxa, que até então estivera concentrado num mocotó. — Deixe de ser besta, uma só não é nem pra vereador! Você acha que um homem desses vira presidente e não vai papar as mulheres, isso não existe!
Da mesma forma que o Bar de Espanha, o Mercado Municipal Santa Luzia, em Itaparica, sempre foi palco de debates sobre todos os assuntos, de biológicos a políticos. Entre suas paredes, ainda ecoam discursos de Piroca Vieira, que denunciava tudo, todos e todas, conferências de Sete Ratos, que testemunhou várias vezes jararacas cruzando com caramurus, narrativas autobiográficas de Gueba, onde ele sempre provava que todo mundo é avariado da ideia, e um sem-número de lembranças de afamados tribunos conterrâneos que já se foram. Os saudosistas se queixam que, depois do desaparecimento de vultos dessa estatura, o Mercado nunca mais foi o ágora de antigamente. Comparado ao dos velhos tempos, hoje seria até uma pasmaceira completa.
Exagero de velhotes inconformados com a marcha do tempo. Pois, ao caminhar o visitante ali por trás da Matriz, bem antes de chegar ao Mercado, não poderá deixar de descortinar ao longe as silhuetas dos debatedores, uns dando passadas dramáticas para lá e para cá, outros exibindo uma quironomia arrebatadora, outros ainda falando de rosto para cima como quem clama aos céus. À chegada, vê-se que os principais oradores são Ary de Maninha e Jacob Branco, quer dizer, jogo duro para qualquer um. É cada anástrofe de entontecer, cada aliteração de repenicar nos ouvidos, cada metáfora de cair o queixo, cada citação de Castro Alves de arrepiar, cada perífrase que mais parece uma serpentina — coisa que só se presenciando para acreditar. A palavra está com Jacob, que, além de orador, é grande estudioso da rica história da ilha.
— A verdade histórica é que a instituição da rapariga — disse ele —, faz parte indissolúvel de nossa mais nobre tradição! O feminismo e outros movimentos deletérios, todos capitaneados por uns merdíocres colonizados, aqui almejando implantar costumes exóticos, querem destruir essa venerável tradição. Sabem os senhores que nossos ancestrais sempre tiveram raparigas e muitos de nós, cala-te boca, somos descendentes de grandes homens com grandes raparigas. Agora estão fazendo essa onda toda com ele, inclusive gente que não tem moral para abrir a boca nesse caso, como se o caso dele fosse alguma novidade. Vamos fazer oposição, mas não oposição desleal! Aqui alguém tem coragem de me dizer que é contra a rapariga?
Antes que Ary, que já estava com aquela cara de águia de Haia que ele faz antes de exibir seus dotes de orador, pudesse iniciar sua intervenção, instalou-se intensa curiosidade e mesmo perplexidade, entre os presentes. Quem era esse de que Jacob falava? Que história era aquela, de que rapariga se tratava, que grande novidade se apresentava, alguém estava estranhando o alguém por ter uma rapariga fora de casa, tudo dentro da normalidade? Anormal e pobre é que não têm e, assim mesmo, muitos pobres se viram direitinho, não envergonham os amigos.
— Pois é — disse Jacob, a voz ainda fremindo um pouco. — Eu sei que ninguém aqui vai acreditar, mas é a pura verdade, saiu em todos os jornais. Está todo mundo esculhambando Lula, porque dizem que descobriram que ele tem uma amante.
— Uma amante só? — interrompeu Alma Roxa, que até então estivera concentrado num mocotó. — Deixe de ser besta, uma só não é nem pra vereador! Você acha que um homem desses vira presidente e não vai papar as mulheres, isso não existe! Triste seria, se ele não aproveitasse, era caso de desconfiar! Ele está no papel dele! O sujeito se elege e vai deixar passar essa oportunidade? Só doido, ali é de artista de cinema pra cima, dá para ele fazer um grande catado no mulherio. Queria eu estar no lugar dele, você ia ver, não ia sobrar uma, era elas chegando, era eu traçando. Não, mentira sua, deve ser outra coisa, rapariga não.
— Rapariga, rapariga.
— Rapariga sustentada mesmo?
— Aí é que está o problema — interveio finalmente Ary, que estivera se coçando o tempo todo para falar. — É porque ela é sustentada por um salário de funcionária pública, não sai nada do bolso dele.
— Mas taí, taí, e era pra sair? Eu pergunto novamente: o sujeito sobe na política, chega até a ser presidente da República duas vezes e não pode conseguir uma simples colocação para o pessoal dele? O indivíduo vai trabalhar pra quê, se não for pra procurar suas melhoras e dos seus? Por que é que ele vai gastar o dinheiro dele sem necessidade? É cada uma!
— Mas não está certo, ele devia sustentar, é o correto. Todos os jornalistas que eu li concordam, ele…
— É a voz dos invejosos e maledicentes, isso tudo é olho grande e despeito, esses jornalistas são todos uns pés-rapados sem ter onde cair morto e, quando pensam que o homem, além de estar por cima da carne seca e com puxa-saco por todo lado, ainda pega aquelas mulheres do Sul do país, aí eles se lascam de inveja e ficam procurando difamar. Agora fazem essas caras de santos do pau oco e cometem essa injustiça com o rapaz.
O dia já estava alto, aí pelas nove horas, quando Alma Roxa encerrou seus comentários. Mas, anunciou ele, agora ia recolher umas assinaturas para o telegrama de solidariedade que resolvera enviar ao ex-presidente: "Cidadãos conscientes da Ilha de Itaparica prestam integral solidariedade Vossência caso rapariga pt Conte conosco."
— E eu vou oferecer a ele umas instalações aqui — concluiu Alma Roxa. — De repente ele aceita, o mulherio vem todo atrás dele e a gente pega as rebarbas. Eu posso não ser ele, mas sempre fui um homem de visão.