Como os leitores da coluna devem saber, já me posicionei contra a decisão do ministro da Justiça, Tarso Genro, de não extraditar o ex-terrorista italiano Cesare Battisti, que estava foragido há 26 anos, foi um dos chefes da organização de extrema-esquerda PAC (Proletários Armados pelo Comunismo) e condenado à prisão perpétua na Itália por quatro assassinatos, pois não imagino que a Justiça da Itália não seja independente do governo, e não creio que uma democracia tão sólida pudesse perseguir um preso político sem que outros poderes protestassem, e até mesmo a imprensa livre.
Além do mais, tudo indica que há um consenso na Itália sobre as medidas adotadas durante o período de combate ao terrorismo, dentro de um sistema democrático que o terrorismo queria destruir, medidas aprovadas pelo Congresso.
Não creio que nem o governo do direitista Silvio Berlusconi, nem qualquer governo de esquerda, como o da época da condenação do Battisti, tenham ingerência sobre a Justiça italiana, e não vejo como um ministro do Brasil possa revogar uma decisão soberana de uma justiça de um país democrático.
Seria totalmente diferente se essas medidas tivessem sido tomadas em um período ditatorial. Como já escrevi aqui, não corresponde à "soberania brasileira" avaliar decisões do Poder Judiciário de um país democrático.
A medida apenas explicita a distorção dos critérios do governo Lula, que considera que a Venezuela tem democracia demais e a Itália, democracia de menos.
Dizendo tudo isso, considero, no entanto, que a minha coluna deve ser um local de discussão dos grandes temas atuais, e o advogado Luiz Roberto Barroso me enviou as seguintes considerações sobre o caso, que considero importante divulgar:
"Há algumas semanas, depois de estudar o processo, aceitei atuar na defesa do refugiado Cesare Battisti, no processo de extradição a que responde no STF. Convenci-me de se tratar de uma causa juridicamente interessante e moralmente justa. Após entrar no caso, no entanto, descobri que ele se encontra enredado em uma teia de preconceitos e de interesses políticos que ficariam melhor em um folhetim do que em um processo judicial. Os preconceitos são os seguintes:
"1. Contra o próprio Battisti, antigo militante de extrema-esquerda. Embora os episódios dos quais participou tenham ocorrido há mais de 30 anos, ele é visto como um espécime anacrônico, um tipo fora de época. E o chamam de "terrorista", quando foi um ativista político radical, como tantos outros, ao redor do mundo e na mesma época.
"2. Contra o ministro da Justiça, que tem adversários ideológicos e eleitorais à direita e à esquerda, que gostariam de vê-lo desmoralizado por uma decisão do STF que anulasse a concessão do refúgio.
"3. Contra o advogado de Battisti que competentemente atuou no caso até meu ingresso (Luiz Eduardo Greenhalgh), igualmente devido a razões políticas e por associarem-no (injustamente, ao que saiba) à Operação Satiagraha.
"A maior dificuldade que enfrento nessa matéria é que a Itália, havendo perdido os dois processos de extradição anteriores - relativos a ativistas de esquerda que atuaram no mesmo período - procurou nesse terceiro caso, injusta e insistentemente, caracterizar Battisti como um criminoso "comum".
"Como você sabe, o Brasil não concede a extradição no caso de crime político, por força de norma constitucional. No entanto, a própria sentença italiana afirma que os crimes foram políticos, em tentativa de subversão do regime.
"Gosto da frase de que "as pessoas têm direito à própria opinião, mas não aos próprios fatos" e a circunstância de você propiciar o debate já fará grande diferença. Faço três observações:
"1. As palavras "terrorismo" e "terrorista", aplicadas à atuação da esquerda revolucionária italiana, são impróprias. Esses termos, sobretudo depois do 11 de setembro, ficaram associados a atentados de larga escala, com vítimas inocentes.
"Battisti participou de uma organização que pretendia derrotar o regime e implantar o comunismo. E houve vítimas. Mas não foi acusado nem condenado por atentados terroristas. O fato de que estava historicamente equivocado e de que foi derrotado não dá direito ao vencedor de chamá-lo assim.
"2. O ministro da Justiça não revogou a decisão italiana. Ele apenas afirmou que ela pode ter sido proferida em um contexto que, em razão do contágio político, impediu a ampla defesa, sobretudo por ter se baseado em delação premiada feita contra um réu revel. Por isso, não ajudaria a cumpri-la, reconhecendo ao acusado a condição de refugiado.
"3. Você tem razão de que se formou um consenso poderoso na Itália contra os ativistas de esquerda e em favor da condenação de todos eles. Governo, Parlamento, Judiciário e imprensa do mesmo lado, unidos pelos mesmos sentimentos. É precisamente contra esse tipo de consenso que existe a Constituição e os direitos fundamentais: para que as maiorias não passem a achar que podem tudo.
"O julgamento de adversários políticos derrotados é problemático em qualquer parte do mundo. Mas observo que os fatos se passaram há mais de 30 anos. Battisti constituiu família, tem duas filhas, publica seus livros pela renomada editora francesa Gallimard e não apresenta perigo para ninguém.
"Sou convencido de que ele é inocente e há muitos elementos objetivos que parecem confirmar isso. Mas, mesmo abstraindo desse fato, por qual razão o Brasil abandonaria sua tradição humanitária e acolhedora de perseguidos políticos de diferentes partes do mundo (desde integrantes das Brigadas Vermelhas até o paraguaio Stroessner) para mandar para a prisão perpétua, sem luz solar, um homem que não oferece perigo a ninguém?."