A garra da reportagem Carlos Alberto Di Franco
Política

A garra da reportagem Carlos Alberto Di Franco




"Os disparos se aproximaram do checkpoint. Rodamos menos de um quilômetro. Depois de uma curva, os ossétios nos esperavam. Um miliciano ajoelhou-se no banco e mirou o fuzil no meu peito, gritando. Abri a porta e pulei na estrada."

O relato em primeira pessoa do repórter Lourival Sant?Ana, enviado especial do jornal O Estado de S. Paulo à Ossétia do Sul, na capa do domingo dia 17, mostra a garra da reportagem de qualidade. A adrenalina da guerra bate forte no leitor, sem sensacionalismo, sem nada de apelativo, numa narrativa informativa e legitimamente dramática. A presença do correspondente no campo de combate possibilita uma cobertura diferenciada e altamente qualificada.

Tradicionalmente fortes no tratamento da informação, inúmeros jornais têm sucumbido às regras ditadas pela televisão. Ao atribuírem à tela mágica (e também à internet) a responsabilidade pelo emagrecimento de suas carteiras de leitores, partiram, num erro de avaliação, para uma rigorosa imitação de outros meios. Cobertura de celebridades, superficialidade e frivolidade têm sido, equivocadamente, a receita para conquistar novos leitores. Matérias de comportamento, carregadas de carga freudiana, festejam suposta empatia com as tribos dos descolados.

Títulos e fotos com forte apelo emocional ensaiam evoluções num terreno em que a TV é muito mais competente. O jornalismo virou show business. Espartilhados pelo mundo do entretenimento, jornalistas estão sendo empurrados para o incômodo papel de uma peça descartável na linha de montagem da ditadura do marketing.

Estamos imobilizados por uma falácia. A força da imagem, evidente e indiscutível, gerou um perverso complexo de inferioridade nas redações dos jornais. Perdemos a capacidade de sonhar e a ousadia de reinventar o jornal. O marketing, instrumento válido e necessário, tem provocado uma verdadeira deserção editorial. O show business é uma realidade. Mas há espaço, e muito, para o jornalismo de qualidade.

O nosso problema, ao menos no Brasil, não é de falta de mercado, mas de incapacidade de conquistar uma multidão de novos leitores. Ninguém resiste à matéria inteligente e criativa. Em minhas experiências de consultoria, aqui e lá fora, tenho visto uma florada de novos leitores em terreno aparentemente árido e pedregoso. O problema não está na concorrência dos outros meios, embora ela exista e não possa ser subestimada, mas na nossa incapacidade de surpreender e emocionar o leitor. Os jornais, prisioneiros das regras ditadas pelo marketing, estão parecidos, previsíveis e, conseqüentemente, chatos.

A juventude foge dos jornais. Falso. Evitam, sim, os produtos que pouco falam ao seu mundo real. Milhões de jovens, em todo o mundo, vibram com as aventuras de O Senhor dos Anéis e com a saga de Harry Potter. São milhares de páginas impressas. Mas têm pegada. Escancaram janelas para a imaginação, para o sonho, para a fantasia. Transmitem, ademais, valores. Ao contrário do que se pensa, os jovens reais, não os de proveta, manifestam profunda carência de âncoras morais. Os jornais que souberem captar a demanda conseguirão, sem dúvida, renovar sua clientela.

A revalorização da reportagem e o revigoramento do jornalismo analítico devem estar entre as prioridades estratégicas. É preciso seduzir o leitor com matérias que rompam com a monotonia do jornalismo declaratório. Menos Brasília e mais vida. Menos aspas e mais apuração. Menos frivolidade e mais consistência. Além disso, os leitores estão cansados do baixo-astral da imprensa brasileira. A ótica jornalística é, e deve ser, fiscalizadora. Mas é preciso reservar espaço para a boa notícia. Ela também existe. E vende jornal. O leitor que aplaude a denúncia verdadeira é o mesmo que se irrita com o catastrofismo que domina muitas de nossas pautas.

Precisamos, enfim, combater a síndrome ideológica que ainda persiste em alguns guetos anacrônicos. Seu exemplo mais acabado é a patologia dos rótulos. Alguns jornalistas não perceberam que o mundo mudou. Insistem, teimosamente, em reduzir a vida à pobreza de quatro qualificativos: direita, esquerda, conservador, progressista. Tais epítetos, estrategicamente pendurados, têm dupla finalidade: exaltar ou afundar, gerar simpatias exemplares ou antipatias gratuitas. A boa reportagem é sempre substantiva. O adjetivo é o adorno da desinformação, o farrapo que tenta cobrir a nudez da falta de apuração. É, freqüentemente, uma fraude.

A apuração de faz-de-conta representa uma das maiores agressões ao leitor. Matérias previamente decididas em redutos sectários buscam a cumplicidade da imparcialidade aparente. A decisão de ouvir o outro lado não se apóia na busca da verdade. É um artifício para validar a premissa que se quer impor. O pluralismo de fachada, hermético e dogmático, convoca pretensos especialistas para declarar o que o repórter quer ouvir. Mata-se a reportagem. Cria-se a versão.

É importante que os repórteres e os responsáveis pelas redações tomem consciência desta verdade redonda: a imparcialidade (que não é neutralidade) é o melhor investimento. O leitor quer informação clara, corajosa, bem apurada. Não devemos sucumbir à tentação do protagonismo. Não somos construtores de verdades. Nosso ofício, humilde e grandioso, é o de iluminar a história.

Inúmeros foram os recados da bela reportagem de Lourival Sant?Ana. Para nós, profissionais e analistas da mídia, sobressai uma constatação prática: a repercussão da matéria indica que o consumidor quer menos frivolidade e mais profundidade. Quer menos burocracia e mais criatividade. Quer menos jornalismo de registro e mais reportagem de qualidade.

Carlos Alberto Di Franco, diretor do Master em Jornalismo (www.masteremjornalismo.org.br), professor de Ética e doutor em Comunicação pela Universidade de Navarra, é diretor da Di Franco - Consultoria em Estratégia de Mídia
E-mail: [email protected]



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