Política
A verdade fica ao longe - DENIS LERRER ROSENFIELD
O Globo - 19/12/2011
A recente publicação do Anuário de Segurança Pública 2011 suscita uma série de questões relativas ao modo mediante o qual a criminalidade tem sido enfrentada e abordada no Brasil. Nos últimos anos, a campanha dita do desarmamento tem sido conduzida como se ela fosse a causa principal da redução da violência em nosso país. Basta qualquer índice mostrar uma diminuição de homicídios, por exemplo, para que alguém já saia dizendo que isto se deve a uma campanha bem-sucedida e em curso de desarmamento.
Os fatos frequentemente nem contam, pois parece que tudo já está provado antes mesmo que os dados sejam apresentados. Não se trata de hipóteses de trabalho que deveriam ser verificadas, mas reafirmações de uma crença de antemão válida. É como se dissessem: se a realidade não corresponde aos fatos, pior para a realidade. A fé segue verdadeira!
O que tem sido alardeado é que a campanha do desarmamento, levada a cabo nos últimos anos, está sendo bem-sucedida e que isto estaria se traduzindo por uma diminuição da violência. Deixando, pelo momento, de lado a relação direta pretendida entre desarmamento e redução da criminalidade, vejamos os dados estatísticos apresentados pelo próprio Ministério da Justiça.
Tomemos uma série ampla, de dez anos, entre 2000 e 2010, para verificarmos se houve ou não uma diminuição dos homicídios. Seria de se esperar uma redução da criminalidade, considerando um desarmamento alardeado como bem-sucedido, realizado com amplas campanhas. Ora, nesses dez anos, o número de homicídios aumentou de 45.360 para 49.932, ou seja, um aumento de 10,1%. Os dados estatísticos não comprovariam, portanto, que o recolhimento das armas de cidadãos, não criminosos e não bandidos, enfatizemos, tenha se traduzido pela diminuição de homicídios. Um espírito aberto se perguntaria se não há outras causas em jogo, dentre as quais o desarmamento do cidadão de bem não seria a principal.
Se tomarmos os estados da federação, 27 entidades federativas, 20 apresentaram um aumento de crimes na década, sendo que apenas sete apresentaram uma diminuição. Ou seja, também no cômputo por estados, houve um aumento da criminalidade, em que pese, reiteremos, o desarmamento dos cidadãos de bem, que procuram apenas a autodefesa, em um espírito de livre escolha. Mais precisamente, poderíamos acrescentar que os bandidos não foram desarmados. Eles não se apresentam voluntariamente para entregar as suas próprias armas!
Ademais, acrescentemos que o comércio civil de armas, hoje, no Brasil é praticamente inexistente. As exigências para a compra de armas são tão grandes e dispendiosas, além de extremamente demoradas, que esse mercado despareceu. Bandidos não compram armas em lojas especializadas. Pior ainda, os números mostram que eles continuam armados e, muitas vezes, com armamentos pesados, de uso restrito militar.
Dentre os números apresentados de redução da violência, destacam-se os estados de São Paulo e Rio de Janeiro. Podemos, sensatamente, nos perguntar se foi o "desarmamento" que produziu essa diminuição. Outras hipóteses poderiam ser aventadas, dentro de um espírito científico, não fechado por uma crença preestabelecida.
No Fórum de Segurança Pública, consta uma carta assinada pela Secretaria de Segurança Pública do Estado de São Paulo contestando os dados do Anuário, que indicavam uma diminuição, naquele estado, dos recursos destinados à segurança. Diz textualmente a carta: "O aumento dos investimentos do governo do estado na área de segurança é uma das principais causas da redução dos níveis de criminalidade e violência em São Paulo. Desde 1999, o estado reduziu em 73% o número de homicídios dolosos." Acrescenta ainda a carta que, em 2005, o montante destinado à segurança, em bilhões, foi de 7,01, tendo subido, em 2010, para 10,78.
Observe-se, também, que a política de segurança pública naquele estado tem sido de combate direto à criminalidade, enfrentamento com bandidos se necessário, em um espírito de tolerância zero. Os serviços de inteligência tiveram uma melhora significativa. Em 2009, 60 mil pistolas foram adquiridas, assim como seis helicópteros. Um espírito isento poderia apresentar essas causas como razões da diminuição da violência.
No caso do Rio de Janeiro, a queda apresentada pode ser atribuída, em boa medida, a uma nova política de segurança pública, com combate direto à criminalidade via ocupação de favelas e o estabelecimento de UPPs, beneficiando um enorme grupo de comunidades. A tolerância com a criminalidade manifestamente diminuiu, o que teria se traduzido por uma redução dos homicídios.
Poderíamos elencar outras causas para o aumento da criminalidade como a epidemia do crack e o narcotráfico em geral, que tem tido um crescimento substantivo no país. O narcotráfico, manifestamente, não pode ser combatido pelo desarmamento da população civil. A confusão seria total!
O nó da questão reside na formação da opinião pública. Os formadores de opinião pró-desarmamento dos cidadãos de bem e os agentes públicos que lhes dão respaldo tornaram a sua campanha uma questão de ativismo político, recusando quaisquer opiniões ponderadas, que contrariem as suas crenças. Pesquisas são dirigidas por orientações ideológicas e vendidas para a opinião pública como o resultado de todo um esforço científico. Antes de qualquer conclusão científica estabelece-se um consenso do ponto de vista da opinião pública, toda posição contrária vindo a ser considerada uma espécie de anátema, coisas de "homens da bala".
O problema que se coloca consiste em reabrir esse véu público, o véu da ideologia, de tal maneira que causas e efeitos possam ser estabelecidos, e não quaisquer nexos associativos, sem fundamento. Com orientações ideológicas, não teremos certamente uma redução da criminalidade. Hipóteses devem ser seriamente testadas. Se a crença toma o seu lugar, os prejuízos são evidentes. A verdade fica ao longe.
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