"Até agora, morreram 4 252 americanos no Iraque e 660 no Afeganistão. Comparado com o outro lado,
é pouca gente. Mas 4 912 caixões são 4 912 caixões"
Quem olhar por alto talvez imagine que o governo dos Estados Unidos está propondo uma discussão sobre a melhor maneira de lidar com a dor dos pais que perdem um filho na guerra do Iraque ou do Afeganistão. Quando são desembarcados na base aérea de Dover, os caixões, cobertos com a bandeira americana, devem ser fotografados e filmados pela imprensa? Ou o desembarque deve ser feito em privado, na presença apenas dos familiares? Os que defendem a presença da imprensa dizem que os soldados mortos têm direito a um tributo público da nação, em nome da qual deram a própria vida. Os que são contra a divulgação de imagens dizem que é preciso respeitar o luto, a dignidade e a intimidade dos familiares na sua hora mais dolorosa. É uma discussão bonita, mas sua embalagem é uma cascata de manipulação explícita.
Havia dezoito anos que o governo americano proibira a divulgação de imagem de caixões chegando com soldados mortos. O autor da censura foi Bush pai. A última renovação da medida foi feita por Bush filho. Até agora, morreram 4 252 americanos no Iraque e 660 no Afeganistão. Comparado com o outro lado, é pouco. Mas 4 912 caixões são 4 912 caixões. Temendo que a sociedade americana não tivesse estômago para tanto cadáver, Bush achou melhor manter a proibição das imagens. Fez isso porque era a favor da guerra e queria higienizá-la, escondendo seu custo mais alto.
Agora, Obama mandou cancelar a censura. Depois de um estudo, o governo resolveu autorizar as imagens, desde que com o consentimento dos familiares. Sendo contra a guerra no Iraque, e querendo expor seu lado mais dramático à opinião pública, Obama acha melhor divulgar as imagens. É chato que a dor das famílias esteja sempre sendo objeto de manipulação da percepção pública da guerra por parte do governo, embora seja quase sempre melhor divulgar do que esconder, expor do que ocultar.
E o que isso tem a ver com o Brasil? Apenas a lição de que é sempre útil desconfiar da boa intenção dos governos.
Adeus, leitores
Esta é a minha última coluna. Prestando contas, registro que, de abril de 2004 até agora, escrevi 209 artigos, que motivaram 3 865 cartas de leitores, contendo muitas críticas e alguns elogios. No ano passado, escrevi semanalmente até maio e, daí em diante, em edições alternadas. No primeiro período, tive a honra de ser o colunista semanal mais lido de VEJA. No segundo, fui inapelavelmente destronado pela escritora Lya Luft e sua prosa sensível que tanto cativa os leitores. É uma honra me despedir com números tão ensolarados, que não são a medida de tudo, mas me servem de consolo diante da qualidade inalcançável do plantel de VEJA, que inclui alguns dos articulistas mais brilhantes do país. Sabe do que falo quem já leu qualquer texto de Roberto Pompeu de Toledo ou J.R. Guzzo.
Obrigado.