O GLOBO - 11/08
A única coisa mais próxima das manifestações foi o nome de uma receita de coquetel inventada por Dick Primavera para oferecer à sua legião de admiradoras
De vez em quando, o comandante Borges deixa de aparecer no boteco nos dias de costume e os debates perdem muito, se não contam com sua sempre combativa, destemida e exaltada participação. Quando indagado sobre essas ausências, geralmente dá respostas rápidas e vagas, tais como “fui ver o pessoal” ou “tive que organizar minhas coisas”, e muda de assunto. Especula-se, não tão à boca pequena, que ele é figura destacada em pelo menos duas organizações clandestinas, claro que com sedes e locais de reuniões ignorados e objetivos igualmente mantidos sob sigilo rigoroso. Uma delas seria dedicada a detalhar o revolucionário Programa Penitenciário Nacional, que tive a oportunidade de mencionar aqui, não faz muito. A outra parece que tem sob sua responsabilidade o projeto para o novo Código Penal, que é bastante inovador quanto às penas, além de cobrar aos presos pela hospedagem fornecida pelo Estado, se possível a preços exorbitantes.
Ele também se reúne regularmente com o grupo de trabalho encarregado de cooperar na elaboração do Plano Borges, do qual, apesar de muito falado, também se sabe muito pouco, apenas uma coisa ou outra, tal como a divergência entre os conspiradores que favorecem a forca e os que preferem a guilhotina, como meio de lidar com a criminalidade e a corrupção. A cadeira elétrica já foi descartada, por não ser sustentável e gerar despesas com a conta de luz. O fuzilamento é considerado plágio do paredón e gasta munição. E eu sei, porque ele mesmo me disse, que o comandante rechaça a posição dos que consideram a forca mais vinculada às nossas tradições e, porque a corda seria biodegradável, ecologicamente correta. Talvez, mas o enforcamento pode estragar órgãos que do contrário estariam em perfeitas condições para doação. Como tem sido divulgado, o Plano Borges não só prevê a pena de morte, como obriga a cessão, pelos executados, de todos os seus órgãos transplantáveis e até mesmo os ossos secos, estes para aulas de anatomia e similares. Em determinados casos, os órgãos seriam vendidos, para ajudar a compensar as famílias das vítimas — o comandante pensa em tudo. Vamos acabar com as filas de transplante e ainda vamos exportar, me diz sempre ele.
Além da pena capital, da prisão perpétua e dos trabalhos forçados, há também diversas outras punições. Por exemplo, quem quer que fosse flagrado ensurdecendo o próximo com um som altíssimo seria levado em cana imediatamente e trancado numa cela com tratamento acústico e alto-falantes do tamanho de pneus de trator, repetindo a mesma música funk dois dias seguidos, uma semana nas reincidências. Os que atearam fogo em suas vítimas vivas seriam dispensados da cessão dos órgãos, porque sua punição seria idêntica ao que eles fizeram com as vítimas. Marido que matou a mulher porque não se conformava com a separação seria guilhotinado usando um par de chifres galhudos. Os que não chegaram a matar portariam obrigatoriamente os ditos chifres, em sua temporada na prisão. Os estupradores seriam também estuprados tantas vezes quantas estupraram, por um estuprador oficial, integrante de uma temida unidade especializada. E por aí segue uma série muito interessante, com a qual, segundo ele, a esmagadora maioria dos brasileiros concorda.
Diante da trabalheira que isso tudo deve dar, ninguém esperava mais que ele aparecesse no sábado passado, mas de repente sua renomada bicicleta elétrica de última geração aponta na esquina e eis que ele chega, de boné novo e camiseta com os dizeres “Se Lula é a resposta, a culpa é da pergunta”, que não compreendi muito bem, mas fiquei sem jeito de perguntar e suspeito que é desses axiomas profundos em que a gente tem de meditar muito, para encontrar sentido. Ele se acomodou à mesa habitual e inquiriu sobre as novidades. Neste período de agitação nas ruas e nervosismo entre os políticos, tinha havido ali algum comentário original, algum debate? Não, não tinha havido nada disso e a única coisa mais próxima das manifestações foi o nome de uma receita de coquetel inventada por Dick Primavera para oferecer à sua legião de admiradoras, de efeito tão potente que foi batizado de coquetel Molotov e que Chico, o dono do boteco, só serve se a moça assinar um termo de responsabilidade. De resto, nenhuma novidade, ele tinha feito muita falta, no exame de certos temas, como, por exemplo, o plebiscito.
— Para otários — disse ele. — Só vão perguntar o que interessa a eles, só vão mudar o que quiserem e precisarem e, se o plebiscito for contra, eles entram com um embargo declaratório cheio de latim e provam no Supremo que o plebiscito foi a favor.
— E a reforma política?
— Para otários! Vão fechar a torneirinha? Vão se privar do bem-bom? Vão cortar as mordomias e os cartões corporativos? Vão deixar de roubar? Vão deixar de se locupletar? Eu quero saber é quando um deles vai para a cadeia, isso é o que eu quero saber, chega de palavrório e enrolação! Eu quero saber quando a gente vai parar de ter medo de ser assassinado em toda parte e não pode nem ir ao consultório do dentista sem fazer extrema-unção, isso é que eu quero saber! Eu quero saber quando alguma coisa aqui vai funcionar decentemente! Eu quero saber onde essa esculhambação vai acabar, eu sou homem de pegar em armas! Eu...
— Calma, comandante, não precisa ficar assim, você já está todo vermelho, tenha calma.
— É, você tem razão, me desculpe por gritar, é que à vezes meu sangue ferve, vou esquecer isso, vamos mudar de assunto. Você sabe alguma coisa sobre guilhotinas?