Breve cena no domingo do Balcão - IGNÁCIO DE LOYOLA BRANDÃO
Política

Breve cena no domingo do Balcão - IGNÁCIO DE LOYOLA BRANDÃO


O Estado de S.Paulo - 26/07


Domingo, sete da noite, entrou no Balcão, viu que seu lugar predileto estava vazio. Para quem não conhece o bar, o Balcão tem uma forma (quase) de ferradura e as pessoas sentam-se dos dois lados, isto é, dentro e fora. De maneira que, se você está com alguém, senta-se de frente para ela (ou ele). Muitos anos atrás, sentava-se apenas do lado de fora, como qualquer bar normal. Porém, em um dia que estava tudo lotado, um cliente simplesmente carregou a banqueta para dentro e ficou de frente para a namorada. Rapidamente copiado, outros que esperavam lugar fizeram o mesmo. Ficaram de pé, não havia banquetas para todos. No dia seguinte, Chico Milan e Ticha, sua mulher, os donos, tinham providenciado banquetas para todos, nunca mais a cena mudou. Tiveram apenas de rearrumar a logística dos garçons.

Ele sentou-se. Seu lugar era o primeiro, no que seria o pé da ferradura. Junto à ponta, onde fica o estreito corredor para passagens dos garçons. Ficava sempre de costas para o caixa e para o quadro negro onde escrevem o que falta naquela noite. Raramente falta alguma coisa. Pediu caipirosca de lichia. Nunca tinha bebido, até o dia em que viu duas mulheres morenas, muitíssimo parecidas, sorrisos esplendorosos, como ele definiu, tomando com ar deliciado. Um garçom informou que eram mãe e filha. A jovem, cantora, a mãe, arquiteta. Mais pareciam irmãs. Ele se interessou pela mãe, quis saber mais, porém o garçom calou-se, cioso da privacidade de suas clientes.

Então, ele viu entrar uma mulher alta, jeito de modelo, um menear nervoso de cabeça. Ela olhou em torno e, mesmo com o Balcão semivazio, era inicio da noite de domingo, sentou-se diante dele. Podia ter sentado onde quisesse, mas veio para perto. Indagou:

- Está esperando alguém?

- Não.

- Então não incomodo?

- Por que haveria de?

- Como você disse?

- Por que haveria de?

- Engraçado esse teu modo de falar.

A caipirosca dele chegou, ela quis saber do que era. Lichia, ele respondeu, lacônico. A jovem era interessante, bonita, lembrava a atriz Scarlett Johansson. Ela pediu uma caipirosca igual.

- Você é casado?

- Não preciso responder a essa pergunta. Minha vida é minha vida.

- Você mexe com quê?

- Como?

- Mexe com quê? O que faz?

- Você é mineira?

- Sou, como adivinhou?

- Por causa da pergunta. Mexe com quê. Mineiro que fala assim. Vendo seringas.

- Seringa de injeção?

- Sim.

- Que profissão mais engraçada. Tenho horror a injeções, quando preciso tomar alguma, desmaio. Desmaio mesmo. Caio dura. Dá para viver disso?

- Me viro bem.

Ela tomou um gole, dois, em silêncio, parecia acabrunhada.

- Você está bem?

- De baixo astral, vim aqui para encher a cara. Meu noivo me largou. Desapareceu faz seis dias, não telefonou, não deu notícias, não mandou e-mail nem telegrama.

- Tinham brigado?

- Usei calcinha vermelha, ele odiou, disse que ia comprar...

- Cigarro, e não voltou.

- Não, ia buscar um beirute, estávamos com fome. Sumiu.

- Foi à lanchonete onde ele costumava comprar? Perguntou?

- Disseram que ele apanhou o beirute, dois guaranás e contou que ia comer com a namorada.

- Que é você?

- Ele terá outra?

A lágrima correu pelo rosto dela, ele quis ajudar, buscou um lenço no bolso, não tinha. Houve época em que os homens andavam com lenços de tecidos finos, podiam oferecer, podiam enxugar as lágrimas das mulheres, era de bom tom. Odiou-se ao apanhar um guardanapo de papel e ousou passá-lo sobre a pele dela. Sentiu imenso carinho sentindo o desamparo dela. A jovem chorou convulsivamente. Levantou-se:

- Me desculpe, preciso ir. Preciso ir.

- Para onde vai? Quer que vá junto?

- Não! Vou passar em casa, ver se ele chegou. Se não chegou, irei à lanchonete de novo. Tenho passado por todos os lugares onde há um bom beirute, estou com fome. Fome e dor de cotovelo são horríveis.

- Come aqui, é bom, muito bom.

- Tenho medo dele ter voltado e não me achar em casa. Você me paga a caipirosca?

- Claro...

Saiu correndo, chorando, Ticha e Chico, que chegavam, ficaram olhando. Marcelo, no caixa, fez um ar de quem não entendeu, achou que os dois tinham brigado. Porém o Marcelo já viu tantas naquele bar que não se surpreende mais com nada.



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