Despesismo não rima com Esquerda
Política

Despesismo não rima com Esquerda


É sempre estranho constatar como, em momentos de crise como os actuais, as forças políticas defensoras do modelo económico vigente continuam a beneficiar de um benefício da dúvida por parte do eleitorado. Ou seja, continua a apoiar-se quem é, no mínimo, parcialmente responsável pelo que se está a passar. Que estranha cegueira esta, não? Como pode a opinião pública mostrar tão pouca lucidez e este respeito?

Bem, comecemos por recordar que o comum dos mortais está pouco disponível para entrar em reflexões profundas sobre modelos económicos, sobre as causas de determinados fenómenos e as consequências de determinada linha política. Tudo isso são mundos para os quais a opinião pública não está assim tão desperta. É portanto aqui que entra o pegajoso discurso do “andamos a viver acima das nossas possibilidades” ou do “tudo isto é como uma casa, temos que cortar na despesa, que cortar no desperdício”. Para lá da procura de causas estruturais, é bem mais simples explorar matérias facilmente absorvíveis pelo senso comum.

O desperdício ou despesismo no Estado, o esbanjamento de dinheiros públicos, é um destes domínios, normalmente agarrado desde logo pela direita política para justificar qualquer coisa que tenha corrido mal. E fá-lo regra geral com considerável sucesso. Não será por acaso que parece ter sido este o raciocinio hegemónico que desde logo se impôs a nível nacional. Se perguntarmos as causas da crise ao senhor Joaquim do restaurante da minha rua ou à Dona Glória do prédio em frente, será com grande probabilidade a explicação que nos darão. Tal não deixa de reflectir dificuldades do discurso político à esquerda para conseguir fazer passar a sua mensagem. Dificuldades que estranhamente sucedem num momento em que os problemas estruturais do actual modelo económico fizeram-se sentir em todo seu explendor.

Diversas (e complexas) são as causas desta dificuldade de passar a mensagem. Mas arriscaria dizer que uma entre muitas é esta menor da tendência da esquerda em também assumir como ultra-prioritário o ataque ao esbanjamento dos dinheiros públicos. Trata-se de uma questão demasiado estrutural para não ser considerada cimeira. Sublinhar tal combate de forma incansável é não só ser coerente, mas também não deixar a descoberto um flanco que a direita tradicionalmente aproveita com grande eficácia. Independentemente de se considerar que este devia ser um momento de investimento e não de fundamentalismo na consolidação das contas públicas, o combate aos desperdício e despesismo não pode ser esquecido. Até porque em tempos de crise ninguém compreenderá complacências nestes domínios.

Ganha-se assim legitimidade acrescida para sublinhar de forma veemente que o desperdício ou o despesismo públicos não se encontram nos salários ou nas prestações sociais, nem nas redes prestadoras de serviços públicos (e.g. escolas, hospitais) mas sim numa série de outros domínios. E exemplos a este respeito não faltam, como é sabido: da crítica da proliferação de empresas, fundações e institutos públicos à multiplicação de cargos dirigentes e de assessorias, da censura aos luxos e mordomias existentes em numerosos organismos públicos à defesa de uma cultura de poupança no consumo de recursos, da denúncia das parcerias público-privadas à crítica severa da flexibilização das regras de contratação pública e à pouca transparência e rigor dos orçamentos dos organismos. A maioria das medidas neste sentido geraria importantes poupanças. Outras valeriam sobretudo pelo simbolismo que encerram.

Não compete à esquerda ficar com o ónus de considerar o sector do Estado como um paraíso. O Bloco não o considera e precisamente por isso prioritizou fortemente algunas das matérias acima nas suas intervenções recentes. As 15 Medidas para uma Economia Decente são um dos importantes exemplos deste esforço. No entanto, algumas das medidas emblemáticas de controlo do despesismo e desperdício público acabaram por surgir em força na agenda assinadas por Passos Coelho ou Paulo Portas, com grande aplauso da generalidade da opinião pública. A direita política demonstra mais uma vez não hesitar em agarrar estas temáticas. Se calhar é tempo da esquerda defender ainda melhor este flanco, precavendo-se de forma mais eficiente de uma jogada desde sempre utilizada pelos seus adversários. Certamente que uma melhor prioritização destes domínios terá impactos positivos no modo como a esquerda de confiança conseguirá fazer chegar a sua mensagem à opinião pública.
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Artigo publicado hoje no Esquerda.net
(Imagem: Atlantic Council)



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