Política
Ensaio sobre a cegueira
Ensaio sobre a cegueiraAs comparações entre a crise atual e a de 1930
ignoram o novo papel dos países emergentes e o
desastre social de outros períodos de turbulência
Marcio Aith
Fotos Imaginechina e Bettmann/Corbis
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DEPRESSÃO? QUE DEPRESSÃO? Consumidores em shopping de Xangai (à esq.) e correntistas de um banco que quebrou no crash de 1930 nos Estados Unidos: diferenças |
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O filósofo americano Thomas Kuhn definiu o "paradigma da cegueira" em seu livro A Estrutura das Revoluções Científicas, de 1962. Trata-se de um processo pelo qual análises consolidadas impedem que se enxerguem, com nitidez, situações novas. Algo semelhante parece estar ocorrendo ao se interpretarem a gravidade e a extensão da atual crise financeira mundial. Ela é grave, ninguém duvida – só neste ano, onze bancos quebraram em razão dos abalos financeiros iniciados em agosto do ano passado, e as estimativas de perdas com o crédito podre na economia americana giram entre 500 bilhões e 3 trilhões de dólares. Esses números levaram o investidor George Soros a compará-la, sem as reservas feitas pelos especialistas abaixo, ouvidos por VEJA, à Grande Depressão de 1930. A comparação gratuita impressiona, mas embute uma cegueira que, com cinismo, pode-se dizer que beira a esperteza. Quem propala perigos demais está, no fundo, pedindo confete, ou ajuda, dos governos. Abaixo, relatos do que foram crises profundas:
• Na Grande Depressão, a taxa de desemprego nos Estados Unidos saltou para 25%. Metade dos bancos fechou as portas e 90 000 empresas desapareceram.
• No período posterior à II Guerra Mundial, a população européia, 10% maior, alimentava-se com apenas quatro quintos da comida disponível na década de 30.
• Os choques do petróleo de 1973 e 1979 provocaram uma retração de 13% no comércio internacional e fizeram o desemprego na Europa quase triplicar. Na Inglaterra, o governo determinou que a indústria funcionasse apenas três dias na semana.
• O Japão passou a década de 90 arrastando a vergonhosa taxa de crescimento do PIB de 1% ao ano, em média, por causa do estouro da bolha que havia se formado nos mercados imobiliário e financeiro.
O que chama atenção na crise atual é o fato de a economia real, que envolve a indústria, o consumo e as exportações, estar indo bem, como se houvesse isolado a ameaça do setor financeiro. Mais importante, as autoridades financeiras das principais economias do planeta souberam tirar lições das hecatombes econômicas ocorridas no passado. O Tesouro americano e o Federal Reserve (banco central dos Estados Unidos), aliados a seus congêneres europeus, foram rápidos em injetar toda a liquidez necessária para que os mercados financeiros não sucumbissem. A mais recente ação nesse sentido foi a intervenção estatal nas duas gigantes hipotecárias americanas na semana passada. Esse trabalho coordenado impediu que houvesse um estiolamento completo nas linhas de crédito – como aconteceu no crash de 29, exacerbando a crise. Não se deve esquecer também que o mundo possui hoje pólos diversos de consumo e crescimento, principalmente na Ásia.
O capitalismo americano terá de se purgar de seus excessos, notadamente a bolha no preço dos imóveis – um desequilíbrio que vinha sendo apontado desde 2005 por dezenas de observadores, dos quais o mais enfático é o respeitado professor Robert Shiller, da Universidade Yale. As bolhas criam riqueza quando se inflam e destroem riqueza quando estouram. Desde a bolha de internet que se inflou nos anos 90 e estourou em 2000, o capitalismo turbinado pela hegemonia e pela globalização vem produzindo megacrises. Agora é a vez da bolha imobiliária. Ela será metabolizada, pois, como toda crise do capitalismo, essa traz em si o germe de sua própria solução.
Seis visões sobre a crise Jean Ayissi/AFP
| Kenneth Rogoff Professor de economia de Harvard, ex-economista-chefe do FMI "Por sua profundidade e duração, é a maior crise financeira desde 1930. Empresas estão se desfazendo na bolsa. Esse efeito se espalha pelo mundo. O desemprego nos Estados Unidos já é o mais alto dos últimos quatro anos (6,1%). Há o risco real de a crise se espalhar para outras áreas da economia." | AP
| Raghuram Rajan Ex-economista-chefe do FMI, professor de finanças da Universidade de Chicago "A crise acionária de 1987 foi curta. A atual é muito pior. O problema do crédito ainda nem apareceu de verdade. Por enquanto, os bancos ainda emprestam dinheiro para cumprir compromissos assumidos anteriormente. Vão conceder novos financiamentos quando isso acabar? Ninguém sabe." | Rogerio Pallatta/Valor/Folha Imagem
| Armínio Fraga Ex-presidente do Banco Central do Brasil "A crise só não exibe o mesmo impacto social de 1930 porque o paciente foi colocado rapidamente na UTI pelas autoridades monetárias. Se o Fed e o Banco Central não tivessem agido prontamente desde o ano passado, as conseqüências teriam sido dramáticas para as pessoas e as empresas." | Gene J. Puskar/AP
| Allan Meltzer Professor de política econômica da Universidade Carnegie Mellon "É tentador exagerar um problema, principalmente quando existe um objetivo subjacente. Geralmente quem promove o exagero são os que se desdobram para obter ajuda do governo. O Congresso acostumou-se a atendê-los. O custo tem sido transferido aos contribuintes." | Guenter Schiffmann/Landov
| Barry Eichengreen Professor de economia da Universidade de Berkeley, ex-conselheiro do FMI "Há uma tendência a dramatizar em excesso as experiências que se vive. A crise de 1930 — quando metade do bancos dos Estados Unidos faliu ou desapareceu — foi infinitamente mais séria. Prefiro pensar que a crise atual é ‘a pior da era recente da securitização em massa’. É um novo bicho." | Mel Evans/AP
| Harvey Rosen Diretor do Centro de Estudos de Políticas Econômicas de Princeton "Muitos analistas aumentam a crise porque trabalham no setor financeiro. Para eles, realmente há um problema — suas empresas estão falindo, seus empregos estão em perigo. Isso influencia para piorar a percepção geral da crise. Mas o estado da economia como um todo não é tão ruim." |
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Com reportagem de Renata Moraes
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