Na volta das curtas férias de virada de ano, o presidente Lula está sendo obrigado a usar toda a experiência de administrador de ambiguidades para manter sem fissuras irreversíveis um governo assentado em eclética aliança políticopartidária, formada por frações dos mais diversos quadrantes da geografia ideológica. Sempre que o Planalto pende para um dos lados, e rompe este equilíbrio instável, os sismógrafos registram o movimento.
Lula embarcou para a Bahia deixando uma crise militar, devido à alteração na Lei da Anistia, para permitir a denúncia judicial de agentes públicos que atuaram na repressão política na ditadura. A revisão desejada, porém, não atingiria guerrilheiros daqueles tempos, alguns dos quais ocupam hoje altos cargos em Brasília.
Nos dias de suposto descanso, outras crises afloraram, quando se percebeu que o tal Programa Nacional de Direitos Humanos, em que foi embutida a reforma na Anistia, é um plano de governo, e com propostas inconstitucionais. Uma delas, a censura à imprensa, em nome da defesa dos "direitos humanos", guarda-chuva amplo o suficiente para abrigar desde medida de desrespeito à propriedade privada à regulamentação do imposto sobre fortunas, descriminalização do aborto, financiamento público de campanhas, e assim por diante.
Adestrado também na arte de recuar de forma organizada, Lula, na segunda-feira, confirmou aos militares que não permitiria discriminações na questão da Anistia — tema que muito provavelmente será decidido na Justiça. E ainda tratou de contemporizar com a Igreja na questão do aborto — com a qual inclusive está alinhado neste debate —, e no caso da união homossexual.
Mas as zonas de tensão continuarão se o recuo não for geral.
Não fará desaparecer os conflitos argumentar que o plano repete, em parte, a versão tucana, aprovada no governo FH. Afinal, é gritante a contaminação do programa lulista por uma ideologia autoritária de esquerda.
A orwelliana "Comissão da Verdade", encharcada de revanchismo, é uma criação do governo Lula. Cabe, a propósito, registrar que nada se tem a opor a que a sociedade consiga amplo acesso aos registros oficiais dos anos de chumbo, em especial os familiares de mortos e desaparecidos. O inadmissível é revogar a anistia a favor de um lado, e com isso reabrir um capítulo já encerrado da história.
Se o "programa de direitos humanos" se resumir a um estratagema político, a fim de servir de toque de reunir para esquerda, houve erro de cálculo.
Já se deve ter percebido que manobras político-eleitorais não valem o preço de jogar o país na rota de uma crise institucional.