A viagem do presidente Barack Obama ao Brasil pode ser histórica. A
prudência, entretanto, recomenda esse adjetivo apenas para o episódio
que já aconteceu e é visto com a perspectiva do tempo. Além do mais, a
palavra história é cheia de armadilhas para quem acha que ela tem um
sentido, um curso linear ou é o desdobramento de um script antecipado.
Diante dos últimos acontecimentos - rebelião no mundo árabe, terremoto
e crise nuclear no Japão -, até mesmo o homem mais poderoso do mundo
deve reconhecer, no íntimo, que nem tudo está sob controle.
Se a história fosse linear e previsível, depois do diálogo Lula-Bush
em torno do etanol Obama e Dilma estariam agora discutindo uma
cooperação dos dois países no desenvolvimento da matriz solar, na
abertura de milhares de empregos verdes. Pelo caminho da fotossíntese,
o etanol era apenas uma das manifestações do solar.
Mas as novas circunstâncias - descoberta do pré-sal e instabilidade no
mundo árabe - acabaram pondo o petróleo no centro da agenda. Se os
dois países decidirem fazer negócios nesse campo, o que se espera de
histórico, no sentido mais realista do termo, são as salvaguardas
ambientais. Desastres num oceano já estressado representam um grande
retrocesso. O próprio Obama traz na memória o acidente com a Deepwater
Horizon.
Dois grandes países das Américas dizem alô ao petróleo num momento em
que talvez fosse preciso dizer goodbye. Mas outro tema delicado deve
aterrissar em sua agenda. Aliás, nem precisa ser incluído na agenda,
pois é inescapável: o terremoto no Japão e a crise nuclear que lhe
sucedeu.
Tanto Brasil como EUA, por intermédio de seus governos, estão
firmemente decididos a avançar em seus projetos de construção de
usinas nucleares. Os dois países já viveram acidentes envolvendo
radioatividade: Three Mile Island e Goiânia, Rua 57. Embora a pressão
nos EUA seja maior, é improvável que os dois presidentes alterem seus
planos. Mas os procedimentos de segurança terão de ser mais rígidos e
convincentes. O histórico nesse processo não é esperar que Obama e
Dilma façam como a Áustria e transformem suas usinas atômicas em
usinas solares. O histórico é se disporem a aumentar as medidas de
segurança nuclear, na esteira do debate sobre Fukushima.
Pode parecer uma agenda nostálgica: petróleo e nuclear. Mas em ambos
os casos esse tipo de produção ficará mais caro. E talvez seja por aí,
por uma perda de competitividade impulsionada pelos gastos de
segurança no oceano e nas centrais nucleares, que as energias
alternativas encontrem seu lugar ao sol.
Nada disso impede que a visita de Obama seja um sucesso. No seu
governo, os EUA exercitam o soft power, uma influência através da
visão de mundo e cultura. Sempre existiu essa tendência, mas ficou
mais popular. No passado, eram os músicos do Modern Jazz Quartet,
sobriamente vestidos com ternos escuros e gravata. Hoje, a embaixada
americana faz um concurso de texto com o sorteio de um iPad.
A escolha do prêmio não é acidental. A Apple é a empresa mais
conceituada do mundo. E a informática, uma das responsáveis pela
importância dos EUA. No Rio de Janeiro, por exemplo, a IBM instalou
equipamentos para um moderno centro de monitoramento de desastres,
dentro do programa Smart Cities. Servirá não só para prevenir
desastres, gerir crises, mas também para administrar, de forma
inteligente, o cotidiano da cidade.
Ainda que não seja objeto de debates, a informática é uma das áreas de
cooperação que avançam com seu dinamismo próprio. Solar, biotecnologia
e internet seriam os pontos da agenda do século 21, segundo o
cientista americano Freeman J. Dyson. Mas nem sempre o século que está
na cabeça de um cientista é o que os governantes têm de enfrentar no
mundo real.
As posições do Brasil e dos EUA sobre o Irã estão também banhadas de
ironia histórica. Elas se tornaram convergentes no governo Dilma. A
mudança na política brasileira aconteceu mesmo com a vitória da
coalizão do governo nas urnas. Não foi, portanto, um gesto eleitoral,
mas um ajuste necessário com o pensamento da sociedade e com a
tradição diplomática do Brasil.
Se a resistência americana à presença do Brasil no Conselho de
Segurança das Nações Unidas foi estimulada pela posição de Lula sobre
o Irã, ela se baseou num castelo de areia. O que define o Brasil não é
o equívoco momentâneo de um governo, mas o pensamento da sociedade e
sua história diplomática. Esses fatores acabam prevalecendo.
Obama não pode fazer no Brasil nem o discurso do Cairo nem o de Praga.
Mas ajudaria bastante uma referência aos esforços pelo desarmamento
nuclear e à disposição de continuar nesse caminho. Isso contribui para
reduzir o exíguo espaço de uma posição simpática a Ahmadinejad.
Numa entrevista ao jornal The Washington Post, a presidente Dilma
Rousseff condenou a execução da iraniana Sakineh Ashtiani por
apedrejamento. Talvez pelas limitações de espaço, ela não pôde
elaborar sobre isso. Mas o Brasil não é apenas contra a execução de
Sakineh. No que depende da opinião da sociedade, inscrita na
Constituição do País, é contra a pena de morte. Contra qualquer pena
de morte.
O discurso de Lula sobre as oposições no Irã, sua ambiguidade em
definir Sakineh como uma mulher incômoda já ficaram para trás e
representam, no máximo talvez, uma corrente partidária, algo muito
diferente de uma política nacional.
O Brasil também exercita o soft power. O filme Orfeu, de Marcel Camus,
que emocionou a mãe de Obama, tinha, entre outros componentes
brasileiros, a música de Tom Jobim e Vinicius de Moraes. É possível
criar uma coalizão democrática que una simpatias nacionais com o
objetivo de prevenir e administrar crises. Fizemos isso no Haiti, onde
o futebol e a música ajudaram na pacificação das favelas de Cité
Soleil e Bel Air. Para além do solar, do genoma e da internet, o
século nos empurra para uma diplomacia preventiva. Qualquer passo
nessa direção será bem-vindo, como bem-vindo é o presidente Barack
Obama.