Fratura do tempo Miriam Leitão
Política

Fratura do tempo Miriam Leitão


O Globo

Tudo é bom no jornalismo: coluna, comentário, entrevista, furo,
crônica, cobertura continuada, desenhar uma página, ver o trabalho
minucioso de uma ilha de edição, correr contra o tempo no fechamento.

Mas a reportagem é um momento supremo. Mergulhar numa história e ir
unindo as pontas, fechando um quebra-cabeças, ouvindo as partes, é um
exercício de paciência e emoção. Quando dá certo, você até sonha.

Sonhei.

A ideia que Cláudio Renato e eu tivemos na Globonews há mais de dois
meses era a de falar do trabalho da Comissão da Verdade e tentar
mostrar como desapareciam os desaparecidos, que mundo era aquele que
ainda nos assombra. O resultado do trabalho foi ao ar na quinta-feira
e ontem — ainda repete às 0h30m e às 19h05m deste domingo — e foi
publicado neste jornal.

O título Uma História Inacabada foi escolhido pela editora Cristina
Aragão. Ele reflete com exatidão e delicadeza o drama do país e das
famílias que não enterraram seus mortos, não realizaram seu luto.

Difícil reconstruir os fatos de cada um dos 183 desaparecidos
políticos, mas eles sumiam assim pra nunca mais ao entrar numa
guarnição militar, ou até em braços clandestinos do Estado, como foi a
tenebrosa Casa da Morte de Petrópolis. Escolher Rubens Paiva é fácil.

Ele foi definido por Ulysses Guimarães na promulgação da Constituição
como a encarnação da sociedade. Descobrir o que os militares da
Polícia do Exército da Barão de Mesquita fizeram em 1971 com o seu
corpo é um segredo que ainda pertence aos assassinos.

Escolhemos então seguir seus passos finais, trazer o personagem à vida
fazendo seu perfil na conversa com pessoas que o conheceram, em fotos
e imagens públicas e das famílias, em documentos como o valioso relato
escrito pela professora do Colégio Sion Cecília Viveiros de Castro.

Fizemos uma longa entrevista com o Procurador da Justiça Militar
Otávio Bravo, que está reabrindo os processos de 39 pessoas que
sumiram no Rio e no Espírito Santo.

Fomos a Brasília duas vezes entrevistar autoridades sobre a Comissão
da Verdade, que ainda não está funcionando. Tentamos falar com os
comandantes militares. O Ministério da Defesa indicou José Genoino. A
linguagem corporal dos chefes das três Forças, na sanção da lei que
criou a Comissão já dizia tudo: eles detestam tudo isso. Integrantes
dos clubes militares, dos oficiais da reserva, deram respostas vagas
aos nossos pedidos, o coronel Brilhante Ulstra, que chefiou o DOI-Codi
de São Paulo, segue orientação do seu advogado para não falar.

O general Rocha Paiva disse com clareza o que pensa. Ele é contra a
Comissão, contra reabrir essa discussão, acha que há um risco enorme
de que a procura de informações termine na execração pública e punição
de seus companheiros. Afirmou que assim pensam os militares da ativa.

Na saída, na porta do seu apartamento em Brasília, o general me
explicou o que o move:
— Não fui da comunidade de informações, mas poderia ter sido. O acaso
me levou para outra área. Não vou deixar companheiros meus em risco,
agora que a situação mudou.

O Brasil pode até decidir não olhar para trás, mas não pode mais
permitir que seja resultado do veto das Forças Armadas. Ele e os
atuais comandantes militares estavam no início das suas carreiras
quando a comunidade de informações montou aparelhos de tortura, morte
e ocultação de cadáver dentro de instituições que hoje prestam
valiosos serviços à pátria.

O general Rocha Paiva rechaçou a minha afirmação de que é um outro
Exército: "É o mesmo."

Pelo acaso desse tempo de jornalismo multimídia, eu fiz, recentemente,
uma reportagem publicada neste jornal sobre empreendedorismo nas
favelas. Para tornar possível o momento que começa a ser luminoso no
Rio, forças policiais e os militares se uniram contra traficantes.

Naquele tempo obscuro se uniram numa coalizão macabra. Por
coincidência, num mesmo dia eu trabalhei de manhã na matéria dos
desaparecidos, fui à tarde para a Rocinha conversar com empreendedores
para a outra reportagem e terminei o dia fazendo coluna sobre crise do
endividamento da Europa. Visitei dois tempos do Brasil e a lembrança
de crises econômicas que já superamos.

Cláudio Renato e eu desembarcamos num sábado de manhã em São Paulo e
passamos o dia no antigo Deops — Departamento Estadual de Ordem
Política e Social — um lindo prédio onde tragédias ocorreram e agora
famílias passeiam no fim de semana vendo exposição do memorial da
resistência. Lá, entrevistamos os três filhos de Rubens Paiva.

A equipe tinha imaginado gravar numa antiga cela. Marcelo foi logo
detonando a ideia, com jeito brincalhão:
— Horrível. Numa cela? Não! Vamos procurar um lugar bonito, leve.

Rimos do nosso erro. Era de fato uma péssima ideia pôr os filhos de
Rubens Paiva numa cela. Onde a gente estava com a cabeça?

Na procura dos fios da meada lemos livros, material de jornal, vimos
documentários. Jason Tércio no livro "Segredo de Estado" recria a
história, com partes de ficção. No livro "K.", Bernardo Kucinski fala
do pai que procura a filha, professora da USP, e jamais a encontra.

Numa frase, ele resume o que as famílias buscam, entre elas, a do
autor: "Para que a sua memória na nossa memória descanse."




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