Fábio Pannunzio
Metade da população é analfabeta. Só um em cada dez trabalhadores tem (tinha) emprego. A expectativa de vida, sem terremoto, é 20 anos menor do que a dos brasileiros.
O Haiti é o grande quilombo esquecido do oeste do planeta.
Mais do que as cenas macabras que correram o mundo, é a pobreza extrema que choca quem está no palco da tragédia. Não fosse ela tão crônica, aguda e abjeta, talvez não estivéssemos tentando adivinhar agora se o terremoto matou cem mil ou cinquenta mil pessoas.
A verdade é que uma tragédia dessas dimensões não pode ter sua magnitude expressa apenas pelo número de mortos. O que ela deve desvelar é que tipo de fator faz com que uma república inteira ainda viva como se a escravidão acabasse de ser abolida.
O terremoto de 12 de janeiro teve o condão de devassar essa miséria aos olhos do mundo. O problema é que todos o enxergam como um inevitável e imprevisível desastre natural. Se fosse assim, talvez a população japonesa já tivesse sido varrida da face do globo há muito tempo.
As dificuldades em dimensionar o número exato de vítimas começam pela ausência de registro civil naquele país. Não há sequer uma fonte fonte confiável de dados demográficos. Tudo é estimativa. Estima-se que a população beire os nove milhões de habitantes. Estima-se que em Porto Príncipe vivam três ou quatro milhões de pessoas. Estima-se que 75 mil pessoas tenham sido enterradas até agora. Estima-se tudo, mas ninguém tem certeza de nada.
Estima-se que 70% dos edifícios do centro da cidade ruiram. Estima-se que todo terão que ser demolidos. Ninguém sequer estima quantos desabrigados dormem e acordam nas ruas, sem ter onde se refugiar do vento frio da madrugada.
O que há de concreto é o dado antropológico. O sofrimento é visível e pode ser percebido em uma conversa banal. A fome, por exemplo, é concreta. Independe de haver ou não tremores de terra. Os haitianos estão acoatumados a ela.
Durante parte dos meus oito dias em Porto Príncipe, fui auxiliado por um estudante de engenharia chamado Luis, que foi meu guia e tradutor. Luis é sobrenome. Assim como Junior é um prenome comum.
Ele tem 25 anos de idade. Sua família é formada por 13 pessoas com parentesco imediato. Todos moravam juntos numa casa sólida no bairro de Petionville que veio abaixo.
Ele me contou que a única pessoa que trabalhava era sua mãe. Vendia em uma banca de rua produtos de estética para mulheres, que são — ainda hoje — muito vaidosas. Amealhava cerca de 200 dólares americanos por mês. Com isso, mantinha o metabolismo de todos os parentes.
Luis me disse que nem sempre havia comida na mesa. Mas quando havia, todos a dividiam igualmente.
No mesmo dia em que ouvi esse relato triste, conversando com um brigadeiro-médico da FAB, pude entender a ocorrência de milagres que eu mesmo testemunhei duas vezes — o resgate de sobreviventes seis, sete, oito, onze dias depois da tragédia.
"Eles estão acostumados com a fome e a privação. Por isso resistem tanto entre os escombros", disse-me o brigadeiro José Maria Lins Calheiros, o comandante do hospital de campanha montado às pressas dentro do QG do Brasil na Minustah.
Nos próximos posts, vou contar como essa desvantagem social acabou se transformando em uma vantagem aparente.
Leia também: