Mirem-se naquelas
mulheres de Teerã
Fartas da opressão imposta pelos aiatolás, que as
tratam como cidadãs de segunda classe, as iranianas
fazem ouvir suas vozes à frente dos protestos
Thomaz Favaro
Ben Curtis/AP |
A revolta do xador Manifestantes iranianas vestem verde, a cor da oposição: a luta é também pela igualdade de direitos para as mulheres |
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Os protestos no Irã ganharam um rosto: o de Neda Agha Soltan, a bela iraniana assassinada por um bassiji, membro da milícia islâmica ligada ao presidente Mahmoud Ahmadinejad. Vestida de jeans e com os cabelos cobertos, como manda a lei da república islâmica, a jovem estudante de filosofia de 26 anos levou um tiro no peito, disparado à queima-roupa. Em poucos segundos, seu rosto estava coberto pelo sangue que jorrou da boca e do nariz. "Pressionei a ferida para tentar estancar o sangramento, mas não consegui. Ela morreu em menos de um minuto", disse o médico que tentou socorrê-la no local. A morte de Neda foi registrada em vídeo por celular. Colocadas na internet, as imagens circularam no globo, expondo o horror nas ruas de Teerã. "Qualquer um que tenha assistido a esse vídeo percebe que há algo fundamentalmente injusto ali", disse o presidente americano, Barack Obama. Para evitar que o funeral se tornasse o epicentro de uma rebelião, o governo iraniano providenciou o enterro de Neda às pressas e proibiu sua família de falar com a imprensa. Foi em vão.
O rosto ensanguentado de Neda é um ícone que sintetiza o que está em jogo no Irã. Não apenas por revelar a brutalidade do regime dos aiatolás – mas também por destacar o papel das mulheres de Teerã. Com seus óculos escuros e véus, megafones e cartazes, elas representam o desejo de mudança no Irã. Desde a revolução islâmica de 1979, que derrubou o xá Reza Pahlevi e instaurou a teocracia islâmica, as mulheres tornaram-se cidadãs de segunda classe. A imposição do xador, a vestimenta disforme que esconde os contornos do corpo feminino, foi a marca dos primeiros tempos. Um traço de maquiagem ou uma mecha de cabelo para fora do véu era o suficiente para despertar a fúria da polícia religiosa. A situação hoje é ligeiramente menos sufocante, mas as melhorias vieram a conta-gotas. As mulheres podem se dar ao luxo de usar véus coloridos e batom – mas as leis discriminatórias continuam as mesmas.
Uma mulher vale, literalmente, a metade de um homem em depoimentos no tribunal e em casos de indenização. Na divisão da herança, uma filha pode levar apenas metade da quantia recebida por seus irmãos. Uma menina pode ser forçada a se casar a partir dos 13 anos, e seu marido pode proibi-la de trabalhar fora de casa ou estudar quando quiser. Para viajar ao exterior, é necessária uma permissão por escrito do marido. Caso se divorciem, ele ganha a custódia dos filhos com mais de 7 anos. Elas são proibidas de ser magistradas e não ocupam o posto de ministra há três décadas. Neste ano puderam pela primeira vez se candidatar à Presidência – mas não conseguiram nada, pois o Conselho dos Guardiães vetou todas as 42 candidatas.
Fotos AFP e Till Budde/Getty Images |
A jovem mártir O filme que mostra o assassinato de Neda Agha Soltan rodou o mundo. À esquerda, uma foto de Neda antes da tragédia. À direita, seu rosto ensanguentado exibido em protesto |
As restrições medievais tornaram-se ainda mais ultrajantes à medida que as iranianas passaram a frequentar as universidades e ingressar no mercado de trabalho. Há três décadas, apenas 13% da força de trabalho era feminina. Agora são 27%. Não foi obra do Twitter, nem do MSN. O que se viu nas ruas de Teerã foi o resultado de anos de esforços femininos em busca de espaço – e só agora tudo o que foi construído em silêncio pode fazer sua estrondosa estreia à luz do dia. Os principais movimentos brotam nas faculdades, onde 65% dos estudantes são mulheres. No ano passado, elas conseguiram barrar uma lei que facilitaria a adoção de múltiplas esposas por parte dos homens. Desde 2006, circula uma petição pelo fim das leis que discriminam as mulheres. Uma das ativistas mais influentes é Zahra Rahnavard, de 64 anos, casada com Mir Hossein Mousavi, o candidato presidencial cuja derrota foi o estopim da revolta. Cientista política renomada e ex-reitora de uma universidade, Zahra enfureceu os conservadores ao fazer campanha ao lado do marido. Os iranianos nunca viram a mulher do presidente Ahmadinejad.
A luta das iranianas é tremenda por se tratar de um aberto desafio ao coração da ideologia que sustenta a República Islâmica – o conceito de que os aiatolás agem por inspiração divina. A legitimidade da opressão das mulheres é dada pelo que eles interpretam como a vontade de Alá expressa no Corão. Desafiar a opressão feminina no Irã é perigoso, pois soa como blasfêmia aos ouvidos mais fanáticos. Por isso mesmo, as mulheres são hoje o principal desafio colocado diante dos turbantes xiitas. Para sorte dos iranianos, não existe, mesmo entre os muçulmanos mais pios, uma visão única de como deve ser um estado islâmico. Muitos acreditam que, com doses de pragmatismo e humanismo, é perfeitamente possível conciliar a fé no Corão com a liberdade feminina.
A mão dura adotada pelo regime parece ter tido sucesso em reduzir as manifestações de rua na última semana. Centenas de partidários de Mousavi foram presos, mas ele próprio é importante demais para ser colocado na cadeia. O núcleo do regime está agora rachado até o cerne. Muitos dos fundadores da república advogam reformas liberalizantes e desafiam abertamente o Líder Supremo. Com as barricadas ainda fumegantes, é difícil prever quem vencerá a queda de braço. Mas há algumas pistas. O americano Jack Goldstone, da Universidade George Mason, cuja especialidade é o estudo das revoluções, vê motivos para acreditar que os protestos no Irã ainda estão no estágio inicial. Dificilmente serão um episódio isolado, como foram as manifestações pela democracia na Praça da Paz Celestial, em 1989. Esmagada pelos tanques chineses, a luta pela democracia entrou em hibernação. Na China, os estudantes encabeçaram os protestos e a maioria da população se mantinha indiferente às reivindicações. Ao contrário, a rebelião no Irã mobiliza diferentes setores da sociedade – e uma prova disso é a presença massiva das mulheres. "O que está em jogo no Irã não é a existência do regime teocrático em si, mas se o governo vai permitir a existência de mais liberdades individuais ou se será uma ditadura brutal e fechada", disse Goldstone a VEJA. Os velhos de turbante há trinta anos tentam ignorar a vontade da metade feminina da população. As mulheres de Teerã estão mostrando nas ruas que a opressão está com os dias contados.
O Pequeno e o Grande Satã
O povo está revoltado, milicianos fascistas matam inocentes à luz do dia e os aiatolás se engalfinham numa disputa pública pelo butim da República Islâmica do Irã. Quem é culpado pela baderna? Em pronunciamento em rede nacional de televisão, o líder supremo Ali Khamenei não hesitou em apontar a responsabilidade do Grande Satã (Estados Unidos) e também do Pequeno Satã, a Inglaterra. Paciente quando se trata de explicar demonologia aos fiéis, o turbante-mor observou que o diabinho britânico se mostra ainda mais perverso que os Estados Unidos. Provas de interferência imperialista nunca são necessárias no Oriente Médio. A cultura muçulmana tem a peculiar necessidade de jogar nos ombros alheios a culpa pelas próprias mazelas. Entende-se a razão de tal escapismo, pois de outra forma seria preciso admitir que há algo de errado com seus aiatolás, xeques e presidentes vitalícios. No caso do Irã, contudo, há um ingrediente a mais. O nacionalismo persa, sentimento que permeia a sociedade iraniana do turbante às sandálias, é impregnado de antiamericanismo. Isso decorre, em parte, da memória mitificada do que ocorreu nos anos 50. O país estava então na linha de frente da Guerra Fria. Tinha um forte Partido Comunista e fronteiras em comum com a União Soviética. Em 1951, Mohammad Mosaddeq, um primeiro-ministro esquerdista, nacionalizou a petroleira Anglo-Iranian Oil, que tinha no Irã a maior refinaria do planeta. No caos político, o xá Reza Pahlevi fugiu do país. Coube à CIA, com apoio inglês, organizar e financiar o golpe militar que mandou Mosaddeq para a cadeia e devolveu o poder ao xá em 1953. O complô é famoso também como um raríssimo exemplo de sucesso conspiratório da agência de espionagem americana, cujo currículo é mais bem descrito por fiascos e erros de avaliação. Em 1979, quando o xá foi novamente derrubado, desta vez para sempre, o complô de 1953 se tornou uma bandeira comum às várias facções. Os aiatolás não precisavam, evidentemente, de desculpas realísticas para odiar os Estados Unidos. O país representa tudo o que tentam evitar no Irã: democracia, liberdade religiosa, direitos iguais para homens e mulheres... Enfim, o satã não é tão feio quanto pintam os aiatolás. |
Os tiranos da internet Como o povo iraniano tem conseguido
A história mostra que qualquer ditadorzinho de aldeia sabe que sua permanência no poder exige censurar opositores. Os jornais são asfixiados economicamente ou simplesmente empastelados. As emissoras de televisão passam para as mãos do estado e vivem de cobrir eventos oficiais e de elogiar os mandatários. Mas como censurar a internet, essa rede caótica sem comando central formada por computadores que podem se ligar por cabos, satélites, retransmissores sem fio e cujos usuários têm meios de esconder facilmente sua identidade? A ditadura chinesa já censura a internet com um grau de sucesso apenas relativo. Mais recentemente, esse desafio foi colocado aos ditadores teocratas do Irã. Desde que o povo começou a se manifestar nas ruas contra o resultado fraudado das eleições presidenciais, os aiatolás passam dias e noites tentando cortar as ligações via internet dos iranianos com o exterior. Como na China, o sucesso dos religiosos nessa tarefa é apenas relativo, apesar de o governo de Teerã controlar a única empresa de telecomunicações do país. No desespero, os homens de turbante chegaram a desconectar a internet por cerca de uma hora. Há suspeita de que a interrupção foi feita para que se instalasse mais um mecanismo de filtragem de mensagens. Esse novo sistema seria ainda mais poderoso do que os usuais censores digitais, já bastante eficientes. Na primeira semana depois da eleição, 82% do tráfego de serviços de trocas de mensagens e arquivos do Irã para o exterior e vice-versa foi bloqueado. As mensagens que conseguiram furar o bloqueio foram as principais fontes de informação e de imagens do que se passava nas ruas da capital iraniana. Talvez a "Primavera de Teerã" seja a primeira evidência de monta de que é impossível para um governo ditatorial nos tempos de internet interromper as correntes de pensamento que ligam seu povo ao resto do mundo. É digno de nota e de pesar o fato de que os meios técnicos de censura e bloqueio são colocados ao alcance dos ditadores pelas empresas ocidentais de alta tecnologia. "Infelizmente, os iranianos no poder dispõem do que há de mais avançado na área", diz James Cowie, da Renesys, empresa especializada em internet. Normalmente, países que lançam mão de sistemas de censura usam o método de bloquear determinados sites, filtrando o acesso a eles com base em domínios da internet (o nome digitado na barra de endereços do navegador, como "google.com") ou IPs (códigos numéricos que identificam computadores dentro de uma rede e, com isso, permitem dizer, ao menos em tese, qual é a origem de certa informação). A essa tecnologia, o Irã somou no último mês um novo tipo de filtro, bem mais restritivo. Desenvolvido em parceria pela finlandesa Nokia e pela alemã Siemens, dois gigantes da tecnologia, o novo filtro faz varreduras inclusive em e-mails e mensagens postadas em blogs, em busca de palavras "perigosas". Quando se localiza um termo proibido, a transmissão é interrompida e a pessoa recebe uma mensagem de erro. O método é conhecido como "deep packet inspection" (literalmente, inspeção profunda de pacotes, nome dado a um fluxo digitalizado de informações). Ele consegue interceptar até mesmo telefonemas feitos a partir de programas como o Skype. Piora o cenário outra novidade que o Irã implementou recentemente: um segundo sistema de filtros instalado na empresa de telecomunicação estatal. Dessa forma, tudo o que circula pela rede do país é checado em dobro - um avanço até em relação ao severo controle realizado na China. Não é a primeira vez que grandes companhias contribuem com governos autoritários para restringir a livre circulação de dados na internet. Google, Cisco e Yahoo! já foram acusados de colaborar com a censura, especialmente na China, outro país em que a liberdade de expressão está sob forte repressão (veja o quadro). Em 2006, o Google ajustou o seu sistema de busca para bloquear expressões proibidas pelo governo chinês. Uma pesquisa, por exemplo, por "massacre da Praça da Paz Celestial" resulta em erro. A modificação aconteceu depois de constantes interrupções no acesso ao buscador na China. À época, a empresa alegou que era melhor filtrar algumas informações do que não oferecer nenhuma. O argumento é recorrente. Em 1999, a empresa finlandesa Nixu ajudou a implantar a internet na Arábia Saudita. O pacote incluiu desenvolver e instalar filtros de conteúdo na rede. Diz Timo Kiravuo, que participou do projeto: "Concluímos que era isso, ou a população saudita não teria acesso a nada". É óbvio também que, nesse caso, as empresas estão pensando em negócios. Um mercado como o da China, por exemplo, que hoje já é o país com o maior número de pessoas conectadas no mundo, não pode simplesmente ser ignorado por um gigante do setor. Apesar dos avanços da tecnologia que censura a internet - e da falta de pudor de governantes para fazer uso de tais recursos -, os regimes autoritários continuam perdendo a batalha pelo controle exclusivo da informação. Em parte, isso se deve ao caráter colaborativo da rede, que permite que pessoas do mundo inteiro ajudem os iranianos a espalhar sua mensagem. A velocidade com que o vídeo do assassinato da jovem Neda Agha-Soltan rodou o planeta é um exemplo claro dessa nova forma de resistência. O mesmo se viu com o esforço de fazer chegar ao Irã números válidos de proxies, ou "servidores substitutos": localizados na Europa, nos Estados Unidos ou mesmo no Brasil, eles intermedeiam as operações realizadas pelos computadores iranianos e permitem, até certo ponto, driblar a censura (veja o quadro). Essa tem sido a estratégia mais utilizada no país para furar os bloqueios. Diz Jillian York, coordenadora de pesquisas da OpenNet Initiative, organização internacional que monitora a censura nos meios digitais: "Felizmente, quem usa a internet costuma estar um passo à frente de quem quer controlá-la. E esse é, sem dúvida, um novo obstáculo para os governos ditatoriais". |
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