Livros Como dourar a pílula da história
Política

Livros Como dourar a pílula da história


A invenção de Niemeyer

Não se trata de um novo prédio: desta vez, o arquiteto transformou uma biografia demolidora de Stalin numa reabilitação do tirano


Jerônimo Teixeira

Fotos Laski Diffusion/Getty Images e Eduardo Naddar/Folha Imagem

POLÍTICA DE GÂNGSTER
Assassinatos e assaltos praticados por Stalin (à esq.) se transformam, na tradução de Niemeyer, em "luta heroica" contra o capitalismo

A adulteração da história foi uma prática costumeira na União Soviética. No regime de Stalin em particular, com seus periódicos expurgos de adversários, tornou-se comum reescrever o passado para rasurar os nomes de companheiros caídos em desgraça, como Bukharin e Trotski, que tiveram até suas imagens apagadas de fotografias. Comunista impenitente aos 101 anos, o arquiteto Oscar Niemeyer mostrou sua familiaridade com a prática stalinista da deturpação dos fatos. Em um artigo recém-publicado na Folha de S.Paulo, o arquiteto de Brasília elogia um livro "de enorme sucesso na Europa" – O Jovem Stalin, do historiador inglês Simon Sebag Montefiore, já publicado no Brasil pela Companhia das Letras. Nas palavras de Niemeyer, a obra "reabilita" a figura de Stalin, "tão deturpada e injustamente combatida pelo mundo capitalista". Não é nada disso: Montefiore – autor também do excelente A Corte do Czar Vermelho, arrepiante crônica das intrigas palacianas da ditadura stalinista – só confirma tudo o que o tal "mundo capitalista" sempre disse de Stalin: trata-se de um dos maiores criminosos do século XX.

Em apenas um sentido, muito limitado, pode-se ler O Jovem Stalin como uma reabilitação: Montefiore desmente certa versão corrente da história comunista segundo a qual a participação de Stalin nos eventos que levaram à revolução de 1917 fora quase nula. O historiador mostra que, ao contrário, Stalin foi um militante comunista importante e ativo. Praticou violentos assaltos a bancos para financiar o partido. Também esteve envolvido em extorsões, incêndios criminosos, assassinatos – um "gangsterismo político que impressionou Lenin", afirma Montefiore. Niemeyer deve ter pulado muitas páginas de O Jovem Stalin, pois seu artigo não diz uma palavra sobre esse banditismo. Ou talvez diga, por meio de um eufemismo: o arquiteto favorito de Hugo Chávez fala na "atuação heroica" de Stalin em sua "luta contra o capitalismo".

A distorção parece ser uma fatalidade da vida das ideias (veja o quadro abaixo). Em certo sentido, é inevitável: sucessivas leituras tendem a afastar um conceito gradativamente do sentido original. A interpretação de textos religiosos – escritos em tempos remotos, e frequentemente em linguagem alegórica – abre problemas para o intérprete moderno. Os exegetas mais sérios do Corão dizem que a jihad é uma luta espiritual ou, no máximo, uma guerra defensiva dos muçulmanos contra os infiéis. Na leitura torta dos fanáticos, tornou-se um chamamento para o terrorismo. A loucura do intérprete, claro, pesa muito: Charles Manson, líder da seita que em 1969 matou a atriz Sharon Tate, grávida de oito meses, e outras quatro pessoas, ouvia incitações ao crime em letras de músicas dos Beatles.

Alguns conceitos são formulados de tal modo que parecem convidar à distorção. É o caso do "homem cordial", expressão com que Sérgio Buarque de Holanda definiu o pendor brasileiro a levar suas razões privadas, familiares, para a vida pública, em detrimento da ordem impessoal exigida pela democracia. Em uma leitura apressada do adjetivo "cordial", muitos ainda hoje tomam o conceito, erradamente, como um elogio da bondade do brasileiro. O "super-homem" que se coloca acima da moral cristã de que Friedrich Nietzsche fala em Assim Falou Zaratustra passou por uma distorção mais violenta: foi convertido pelos nazistas em representante da superioridade ariana (ainda que Nietzsche atacasse a vulgaridade dos alemães em Ecce Homo, sua autobiografia intelectual). Nesse caso, não se trata mais da mudança lenta promovida por interpretações sucessivas, nem de um equívoco de interpretação cometido por um leitor ingênuo. A "nazificação" de Nietzsche foi promovida, com deliberada má-fé, por sua própria irmã, uma antissemita raivosa.

Guardadas as imensas distâncias, Niemeyer fez com Montefiore o que os nazistas fizeram com Nietzsche: sequestrou sua obra, para obrigá-la a dizer o que ela não diz. O arquiteto comuna inventou uma figura impossível: o historiador sério que defende Stalin. Com o olho disciplinado de um censor do partidão, Niemeyer escondeu todas as monstruosidades reveladas em O Jovem Stalin para ficar com o retrato singelo de um moço idealista. Stalin, diz seu artigo, estava "sempre a cantar e dançar alegremente com seus amigos". O problema é o que ele fazia com os inimigos.

Palavras torcidas

Alguns casos famosos – ou infames – de textos deturpados

Rahimullah Yousafzai/AP
O original: o Corão, livro santo dos muçulmanos, fala em jihad, a guerra santa – mas a palavra muitas vezes tem sentido espiritual e alegórico
A deturpação: no século XX, radicais como o egípcio Hasan al-Banna, da Irmandade Muçulmana, impuseram a interpretação única de "jihad" como guerra aos infiéis – a mesma ideia que hoje inspira o terrorismo de Bin Laden
O original: a filosofia de Friedrich Nietzsche (1844-1900) era uma crítica exaltada da moral judaico-cristã – mas também do nacionalismo alemão
A deturpação: a irmã do filósofo, Elisabeth, tratou de distorcer sua obra para torná-lo um teórico da superioridade ariana – e como tal ele foi adotado pelos nazistas
Corbis/Latinstock
Álbum de família
O original: em Raízes do Brasil, de 1936, Sérgio Buarque de Holanda criou o conceito de "homem cordial" – uma crítica à promiscuidade entre o público e o privado na vida brasileira
A deturpação: muitos críticos acham que "homem cordial" é sinônimo de "brasileiro bonzinho". Oswald de Andrade torceu o conceito para confirmar suas próprias ideias sobre cultura "antropofágica"




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