Gustavo Ribeiro
Fotos Roberto Stuckert Filho/ Ag. O Globo e Ailton de Freitas/ Ag. O Globo |
CALEIDOSCÓPIO |
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Não é por acaso que o Brasil ocupa um vergonhoso lugar no ranking mundial dos países contaminados por elevados índices de corrupção. Os escândalos envolvendo políticos, parentes de políticos e amigos de políticos parecem episódios de um seriado que não tem fim. Os personagens podem mudar, mas o enredo é sempre o mesmo: o corrupto é pilhado enchendo os bolsos de dinheiro, segue-se uma passageira onda de indignação e, no fim, nada acontece. O corrupto continua sua vida livre, leve, solto e, quase sempre, também muito rico. Para interromper esse ciclo vicioso, especialistas apontam a punição como a arma principal, se não para acabar, ao menos para reduzir o problema. Depois de seis anos, onze meses e nove dias e vários escândalos em seu governo, o presidente Lula apareceu em público para condenar a corrupção – e com uma inédita veemência. Em discurso, comparou o poder destrutivo da corrupção ao de uma droga, que, sem que se perceba, pode estar presente dentro da própria casa. Depois, criticou o Congresso por não votar projetos de reforma política e, por fim, apresentou sua proposta para atacar de frente o problema: um projeto de lei que pretende transformar a corrupção em crime hediondo.
Hediondo é algo repulsivo, sórdido, que provoca indignação. A pedofilia, o sequestro e o estupro são considerados pela lei como crimes hediondos, punidos com penas mais severas. Ao roubarem dinheiro público, os corruptos estariam sujeitos ao mesmo rigor, o que, teoricamente, é uma excelente iniciativa. Ocorre que o problema da corrupção tem raízes mais profundas. As mudanças substanciais propostas pelo governo se dariam depois de uma eventual condenação. A pena mínima para um corrupto, hoje de dois anos, passaria para seis anos, e a máxima chegaria a dezesseis. Os corruptos só poderiam reivindicar benefícios, como trabalhar fora da prisão, depois de cumprir dois quintos da pena. Os grandes escândalos, porém, têm sempre políticos envolvidos, que gozam de excepcionais privilégios, como foro especial. É nesse ponto que surge a primeira curva em direção à impunidade. Deputados, senadores e ministros, por exemplo, só podem ser investigados e julgados pelo Supremo Tribunal Federal (STF). Apesar da profusão de denúncias de corrupção, nos últimos vinte anos nenhum político foi punido. A maioria dos casos prescreveu sem que fossem a julgamento. Ou seja, de nada adianta simplesmente aumentar as penas se, hoje, os corruptos não chegam sequer a julgamento. No Superior Tribunal de Justiça (STJ), onde são analisados os casos dos governadores acusados de desvios, a situação não é diferente. Segundo a Associação dos Magistrados Brasileiros, apenas 1% dos processos contra autoridades resulta em alguma condenação e, ainda assim, as penas acabam convertidas pelos juízes em multas irrisórias. É como declarar guerra a uma praga de insetos sem usar inseticida.
Outro problema é que o Congresso Nacional demonstra tanto empenho em aumentar o cerco legal aos corruptos quanto o senador Wellington Salgado em cortar o cabelo. Há anos, tramitam no Legislativo diversos projetos sobre o tema, alguns do período em que eclodiu o escândalo do mensalão petista. Um deles é do então senador Hélio Costa (PMDB-MG), ministro do governo Lula, que propunha transformar a corrupção num crime inafiançável e imprescritível. Um ano antes, o ex-deputado Babá, então do PT, havia protocolado um projeto idêntico ao do governo, tipificando a corrupção como crime hediondo. Eles nunca foram a plenário para votação. Trazida à tona em meio a denúncias contra a oposição, depois de varridos para debaixo do tapete os escândalos petistas, a proposta do presidente Lula soa oportunista. Antes tarde do que nunca, porém. Diz o jurista, professor e juiz aposentado Luiz Flávio Gomes: "É preciso atacar o bolso dos corruptos. Eles devem ser obrigados a pagar com a liberdade e a devolver o dinheiro roubado dos cofres públicos. É assim que se faz justiça, e é com exemplos desse tipo que você inibe os criminosos".
Um dia antes do discurso do presidente Lula, na véspera do Dia Mundial contra a Corrupção, houve uma festa exemplar em Brasília: a confraternização para comemorar os trinta anos do PT. Na homenagem aos homens e mulheres que ajudaram a construir a história do partido, três mensaleiros mereceriam atenção especial: os ex-presidentes da legenda Luiz Gushiken, José Dirceu e José Genoíno. A programação incluiu a entrega de um caleidoscópio com imagens da trajetória petista a cada um dos homenageados. Foi precedida por um discurso de Dilma Rousseff, candidata do partido à Presidência. Disse ela: "Ser líder do PT tem risco, sim. Muitas vezes, até de perseguição". A ministra se referia às encrencas que petistas eminentes, como o trio ternura citado acima, têm com a lei. Perseguição para os petistas, traduza-se, é o processo do mensalão que tramita no Supremo Tribunal Federal. Nele, Gushiken, anunciado pelo mestre de cerimônias da festa como o "nosso guerreiro samurai", é acusado de peculato. Dirceu, "o imprescindível na estratégia que levou à vitória em 2002", responde a processo por corrupção ativa e formação de quadrilha. O ex-ministro da Casa Civil de Lula foi recebido com aplausos, subiu ao palco, foi de novo ovacionado, distribuiu sorrisos, abraços e cumprimentos, mas não discursou. Quanto ao deputado Genoíno, o homem que forjou documentos para esconder o mensalão petista, ele só não recebeu epítetos gloriosos porque não compareceu à entrega dos caleidoscópios.
A organização da festa, com ingressos que custavam até 5 000 reais, bem que tentou evitar um encontro direto dos hediondos do PT com a presidenciá-vel Dilma. Mas a militância, assanhada como cupins ao redor de lâmpadas, conduziu, aos gritos, seus líderes aos holofotes. A ministra, então, beijou, abraçou e acabou defendendo explicitamente os companheiros. "Não há provas contundentes contra eles", disse, numa referência aos petistas integrantes da quadrilha do mensalão que foram ficando pelo caminho ao longo das investigações. Em seguida, desfiou duros comentários sobre os escândalos envolvendo os adversários democratas. A ministra classificou as imagens do governador José Roberto Arruda, de assessores, secretários de estado e deputados embolsando dinheiro sujo como "estarrecedoras" e pediu punições rápidas e severas aos envolvidos. Tudo muito certo, não fosse pelo fato de que, para o PT, os hediondos alheios são mais hediondos do que os próprios.
Ed Ferreira/AE |
CRIME SEM CASTIGO |