Política
Merval Pereira :: Além das pernas
O GLOBO
A presença das tropas brasileiras no Haiti ganhou uma dimensão muito maior agora, depois da tragédia em decorrência do terremoto. A presença brasileira já era um ponto importante da política externa brasileira de estender a liderança regional do país para a América Central, em uma situação diametralmente oposta à da ação brasileira em Honduras, por ocasião da deposição do presidente Manuel Zelaya.
Naquela ocasião, embora partindo de um pressuposto correto de que não se deve mais aceitar golpes militares na região, o governo brasileiro deixou de lado as peculiaridades do ocorrido, fazendo vista grossa para o fato de que o presidente eleito tentara, ele sim, um golpe para permanecer no poder além de um mandato, o que é vedado como cláusula pétrea na Constituição hondurenha, e embarcou numa aventura chavista.
A tentativa de estabelecer um fato consumado com a volta ao país de Zelaya, acobertado pela embaixada brasileira, não deu certo, e a política externa brasileira, numa tentativa canhestra de ampliar sua influência na América Central, acabou ficando sócia do fiasco de Chávez.
Agora, no Haiti, onde estamos desde 2004 fazendo um trabalho realmente importante e com frutos visíveis, temos uma boa oportunidade para reafirmar nossa importância regional.
Curioso notar que o trabalho do Exército no Haiti, que tanto orgulho nos dá como brasileiros, fica em evidência justamente agora quando se discute no país o papel do mesmo Exército na repressão política durante o regime militar e a necessidade de serem abertos os arquivos das instituições militares no período, e do esclarecimento de situações ocorridos naqueles "anos de chumbo".
A mesma instituição está em destaque nas discussões da sociedade civil, por motivos completamente distintos, o que talvez deixe patente que a sociedade como um todo não tem dificuldade em se orgulhar de seu Exército, e a instituição não deveria ter receio de colocar em pratos limpos situações do passado que, uma vez esclarecidas, e circunscritas a determinado período e à ação de determinadas pessoas, trarão a verdadeira reconciliação entre ela e a população.
Voltando ao Haiti, aumentou enormemente a responsabilidade brasileira, já que o país é visto naturalmente como o líder do trabalho de reconstrução.
Não são uma surpresa, portanto, as declarações tanto do ministro da Defesa, Nelson Jobim, de que o Brasil fará tudo o que for possível para salvar o Haiti, como as do próprio presidente Lula, que está propenso a "adotar" o país, assumindo a tarefa de reconstruí-lo.
Eles agem dentro de uma diretriz que já vinha sendo adotada pelo Itamaraty, a de que caberia ao Brasil, a partir do momento em que decidiu aceitar o chamamento da comunidade internacional para que assumisse o comando da Força de Paz no Haiti, fazer com que essa mesma comunidade internacional se mobilizasse para ajudar no trabalho de recuperação.
Com o terremoto ocorrido, todo o trabalho de reconstrução foi literalmente abaixo. O Exército brasileiro, com o auxílio de várias ONGs também brasileiras, a mais importante delas o Viva Rio, estava assumindo inclusive tarefas de construção de cisternas para o abastecimento de água em Porto Príncipe e a organização de atividades comunitárias, como o recolhimento de lixo nas ruas e serviços básicos de higiene elementar.
Tudo voltou à estaca zero, e possivelmente terá piorado com a involução do estado de espírito dos moradores. O controle da cidade, que está sendo vítima de saques e de depredações pelo desespero dos que perambulam pelas ruas sem destino, deverá exigir muito mais empenho no momento.
O Exército, nos primeiros três anos de atuação, fez um trabalho profundo de estratégia para conseguir dominar os locais que estavam sob o comando de gangues, muitas delas formadas por antigos militares.
O trabalho exitoso dos militares brasileiros agora terá de recomeçar, pois as novas tropas que estão se preparando para assumir a missão em Porto Príncipe já têm informações de que a maioria dos integrantes dessas gangues, que estavam presos, escapou com a destruição da cadeia e do presídio de Porto Príncipe.
O ambiente desorganizado que domina a cidade só facilitará o trabalho desses bandidos, e o surgimento de novas gangues com a falta de perspectiva de futuro.
Por isso, além do controle militar da situação, as tropas brasileiras terão que ter o apoio político do Itamaraty e do governo brasileiro no sentido de garantir, nos organismos internacionais, o apoio necessário a um programa de reconstrução do Haiti.
O Brasil pode e deve assumir a liderança desse movimento de solidariedade internacional, mas não tem condições financeiras de assumir a responsabilidade sozinho.
Será preciso que aconteça agora o que vinha sendo prometido há anos sem que se transformasse em realidade: o verdadeiro empenho de países como os Estados Unidos e os da Comunidade Europeia. Por mais que queira mostrar sua capacidade de atuação, e tenha a responsabilidade da liderança, o Brasil não pode dar um passo maior que as próprias pernas
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