Política
Merval Pereira:Força e fraqueza da classe média
O Globo
Entre 2003 e 2008, segundo dados do Centro de Pesquisas Sociais do Ibre, da Fundação Getulio Vargas do Rio, 31,9 milhões de pessoas ascenderam às classes ABC. Nesse período, a renda do trabalho teve um incremento médio de 5,13% ao ano o que, segundo o economista Marcelo Neri, confere uma base de sustentabilidade das condições de vida para além das transferências de renda oficiais Essa “nova classe média”, suas aspirações e, sobretudo, sua capacidade de ser um “agente fundamental” em uma revisão de valores da sociedade brasileira é analisada pelos cientistas politicos Amaury de Souza e Bolívar Lamounier, no recém-lançado livro “A classe média brasileira: Ambições, valores e projetos de sociedade”, da editora Campus com o apoio da Confederação Nacional da Indústria (CNI).
A sustentabilidade desse modelo é questionada pelos autores, que indicam três pontos de dúvida: a distribuição de renda brasileira, que permanece como uma das piores do mundo; a protelação de reformas estruturais, como a trabalhista e a tributária, “sem as quais o Brasil dificilmente se livrará das barreiras que separam os setores formal e informal da economia”.
Por último, o fato de a mobilidade recente ter dependido amplamente do consumo, e não de novos padrões de organização ou desempenho na produção.
Uma constatação imediata é que é alta a valorização da educação. Tudo leva a crer, segundo os autores, que ela ocorre em razão tanto de antigas considerações de status — a herança bacharelista — como de fatores realistas: a alta taxa de retorno e a necessidade cada vez maior da educação para o acesso a posições mais qualificadas no mercado de trabalho.
As aspirações educacionais para os filhos tendem a ser altas, embora as expectativas de que eles realisticamente possam realizá-las não o sejam necessariamente.
As pesquisas que baseiam as análises do livro, tanto quantitativas quanto qualitativas, mostram que quanto menor a escolaridade dos pais, maior o hiato entre aspirações educacionais para os filhos e as expectativas de que eles venham a alcançá-las.
Os estudos captaram “um sentimento surpreendentemente generalizado” de insatisfação com o nível, ou com a qualidade, da educação, que atinge 40% das pessoas com curso superior; 59% com ensino médio; 63% com ensino fundamental e 69% dos semi-escolarizados.
Com base na pesquisa, os autores destacam duas das saídas que começam a ser buscadas como compensação pela má qualidade. Uma, realista, mas incipiente, é a busca de ensino compensatório, notadamente a educação profissional.
A outra os autores colocam na área propriamente política; no momento, “por razões provavelmente muito conjunturais”, é o que para eles parece estar ocorrendo no debate relativo a cotas sociais ou raciais para acesso ao ensino superior.
À primeira vista, dizem os autores, a nova classe média teria condições de ser agente de uma transformação na sociedade, “uma vez que é alvo e vítima da escalada da transgressão”.
Fica claro nas pesquisas que consciência da gravidade do problema não lhe falta, e ela chega a avaliar os desafios ligados à violência, à corrupção e às drogas como mais graves que as carências referentes à saúde, ao desemprego, à habitação e à qualidade da educação.
Mas, mesmo tendo um capital social “obviamente superior ao das classes C, D e E”, a nova classe média não mostra capacidade de aproveitar em seu próprio benefício certas sinergias há muito conhecidas nos países desenvolvidos, avaliam os autores.
No Brasil, o capital social reside em larga medida nas famílias e no restrito círculo de amigos pessoais. “Um círculo possivelmente virtuoso de relações em círculos mais amplos não se realiza, em larga medida, devido à falta de confiança nos outros, traço cultural disseminado e sem dúvida reforçado pela escalada da criminalidade”, analisam os autores.
As pesquisas mostram que a desconfiança em relação a pessoas estende-se a grupos e organizações da sociedade civil (com exceção da Igreja). Televisão, empresários e partidos políticos recebem percentuais ínfimos de confiança.
Os autores explicam que “participar de organizações é uma forma de consolidar capitais sociais e enriquecer o repertório relevante para o debate e a ação na esfera pública”.
Quanto maior o número de organizações de que alguém participa, maior o seu “capital social”, que se traduz em redes sociais mais extensas e mais densas — um recurso de poder da classe média.
Entre nós, porém, a “arte de associar-se” permanece em nível pouco significativo, constatam Amaury de Souza e Bolívar Lamounier. A maioria dos entrevistados não participa de qualquer organização, e entre os que o fazem, a maioria limita-se a participar de uma única organização.
As instituições religiosas são exceções. Os autores mostram que a participação nessas organizações aumenta no sentido inverso ao do nível de renda. No entanto, a religião, como forma de sociabilidade, “não parece equipar os diferentes estratos sociais na função de remodelar o sistema de valores e inibir comportamentos transgressores”.
Os cientistas políticos Amaury de Souza e Bolívar Lamounier constatam no livro que a classe média inclinase pela democracia como a melhor forma de governo, “mas partilha com os demais segmentos da sociedade um sentimento de aversão à política”.
Em grande parte, esse sentimento deriva da percepção de que a corrupção campeia no mundo da política, mas as pesquisas mostram que é também amplamente disseminada a percepção de que “os políticos e os partidos não se importam com a opinião dos eleitores”.
A classe média tem maior interesse pela política e manifesta um grau significativamente maior de compreensão dos eventos políticos
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