Miriam Leitão Mundo plural
Política

Miriam Leitão Mundo plural


O GLOBO

Milan Kundera escreveu no ensaio “O homem do Leste” que nos anos 60 ele teve que deixar sua pátria e ir morar em Paris. Lá, atônito, descobriu que era considerado “um leste europeu exilado”. A República Checa, diz ele, sempre esteve geograficamente na Europa Central e suas origens nunca foram russas. Nem sua cultura ou história.

Seu alfabeto nunca foi o ciríli

O Muro erguido em 1961 fez mais do que fraturar a joia europeia, Berlim. Fez pior que dividir o mundo em dois, criar uma lógica bipolar, separar famílias e um país. O Muro criou uma simplificação grosseira que transformou numa massa uniforme todos os que ficaram do lado de lá, todos os países submetidos ao poder soviético. Ainda hoje, vinte anos depois da queda do Muro, e da Revolução de Veludo, que separou pacificamente a República Checa da Eslováquia, o mundo ainda se refere a todos eles como países do Leste Europeu.

Ficou como um cacoete que simplifica o complexo e eterniza o fantasma do mundo soviético.

Hoje, dez deles já estão na União Europeia, mas ainda há quem repita a mesma divisão arbitrária do mundo, feita após a Segunda Guerra Mundial. Kundera diz no texto que se ofendia duplamente no exílio: seu país estava ocupado por uma potência estrangeira, e ele se sentia cultural e geograficamente expropriado.

O mundo bipolar, além de tudo, emburrecia. Hoje, há quem se lembre que nem todos os sonhos se cumpriram, que Alemanha Oriental e Ocidental ainda são desiguais, que a época de ouro que se sonhou possível, após a queda do Muro de Berlim, não foi exatamente como se imaginava.

Toda insatisfação é verdadeira.

Não há mundo perfeito, há apenas mundos melhores que outros. E o atual é melhor, a despeito de todos os problemas.

Houve momentos terríveis após a queda do Muro.

O pior deles, sem dúvida, se passou na antiga Iugoslávia, que era considerada pelo mundo capitalista como uma versão suavizada do comunismo, um país multiétnico e multicultural que tinha conseguido organizar as suas diferenças num mesmo espaço. Os dez anos de guerras étnicas deixaram 140 mil mortos para mostrar ao mundo que não se faz uma unidade à força e que o ódio se manteve intacto dentro de um regime de opressão.

A revista inglesa “Economist”, no texto sobre o assunto, lembra que agora um europeu pode dirigir do Mar Báltico ao Mediterrâneo sem ter que exibir seu passaporte em fronteiras que antes eram marcadas por minas terrestres. Lembra também que até a Albânia hoje faz parte da Otan. O que leva a pensar como é ultrapassado o tratado do Atlântico Norte, que se opunha ao Pacto de Varsóvia.

O ano 1989 também se desdobra em múltiplos acontecimentos pelo mundo.

No Brasil, foi a primeira eleição direta depois de 25 anos da ditadura imposta dentro da lógica da Guerra Fria. Na China, foi o ano em que o sonho de liberdade foi massacrado na Praça da Paz Celestial. O governo acelerou a abertura econômica produzindo duas décadas de crescimento forte, como se isso compensasse.

Mas a muralha política permanece oprimindo. Tanto que no aniversário de 20 anos do levante estudantil, o Partido Comunista ainda teve que usar a força para evitar comemorações indesejadas.

Na Rússia, o poderio de Vladimir Putin, que se eterniza governando diretamente ou através de interpostas pessoas, lembra em tudo o velho mundo soviético com seus ditadores longevos. Está ainda muito longe de poder ser chamada de democracia. O assassinato da jornalista Anna Politkovskaya, em 2006, não deixou qualquer dúvida sobre a natureza do regime, apesar das eleições regulares no país.

Na economia, a Rússia encolheu e hoje é quem tem mais dificuldade entre os BRICs de atravessar a crise econômica, por erros internos.

Ao contrário da China, Índia e Brasil, a Rússia tinha sub-prime: as empresas estavam superendividadas. Isso sem falar na excessiva dependência do petróleo.

O mundo pós-Muro de Berlim está longe de ser perfeito. Mas há pontos de esperança. A unificação alemã não tem sido fácil. O déficit público aumentou muito, os gastos do governo, com o lado que era a antiga Alemanha Oriental, foram tão altos, que deixaram os moradores do lado ocidental com a sensação de que eles pagaram uma conta pesada demais.

O desemprego no lado oriental é o dobro da taxa do lado ocidental, alimentando as diferenças. Berlim não voltou a ter os investimentos e o peso econômico que já teve no passado.

A Alemanha terminará este ano com o PIB negativo, por causa da crise internacional. Há várias dificuldades, mas a Alemanha é a maior economia da Europa, um país renovado, onde fábricas poluidoras foram fechadas, a infraestrutura foi refeita. É um país que se reencontra a cada dia. E, o melhor: não há mais o Muro, aquele aleijão, aquela fratura no meio de uma história comum, como uma cicatriz da guerra que rasgou o perdedor em dois e o submeteu, por décadas, a lógicas estrangeiras.

Milan Kundera diz, no seu ensaio, que seu país teve referências ocidentais como o renascimento, as artes gótica e barroca; e processos históricos comuns com a Alemanha. Um dos símbolos nacionais é o teólogo Jan Hus, que o alemão Lutero reconhecia como seu precursor na reforma protestante.

Segundo o escritor, se a verdade histórica e cultural da antiga Boêmia não for reposta nunca, Hus, que foi reitor da Universidade de Praga, terá que passar a eternidade junto com Ivan, o Terrível, com o qual nada tem em comum. O mundo bipolar, além de tudo, apagava a beleza da pluralidade cultural.



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