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"É um bom exercício mental imaginar como poderia ter
sido nossa literatura caso seu patrono houvesse
se revelado mais desafiador e menos inibidor"
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Se a grandeza de Machado de Assis não está em questão, o mesmo não se pode dizer de sua influência na literatura brasileira. Para começar, não deixa de surpreender quão difícil é encontrar um autor relevante que possa ser considerado seu seguidor, aprendiz, discípulo. Mas nosso maior ficcionista talvez seja mais ou menos responsável por outras ausências.
Durante os últimos séculos, conforme se estabeleciam as nações modernas, formavam-se também as literaturas nacionais. Nestas, cada gênero literário possuía seu lugar, e o de honra era ocupado pela ficção narrativa, especialmente o romance, forma recente que, entre suas aspirações, tinha a de se tornar uma espécie de autoconsciência do país, da sociedade, de sua história. Embora esta se assemelhe à visão marxista, convém notar que seus teóricos converteram uma constatação em algo normativo. Seja como for, o desafio de criar uma obra enciclopédica e acessível confundia-se não raro com o esforço de edificar uma nação moderna.
As literaturas nacionais bem-sucedidas geraram, cada qual, um conjunto de romances assim, conjunto em cuja seqüência se pode acompanhar a transformação da sociedade no correr do tempo. Franceses, de Balzac e Zola a Proust, britânicos, de Richardson e Jane Austen até Evelyn Waugh, os russos oitocentistas, Tolstoi, Dostoievski e Turguêniev, cumpriram tal papel. Poderíamos chamá-los de a "situação" literária, e a ela se contrapunha desde sempre uma "oposição" como a exemplificada, em inglês, por Laurence Sterne e seu Tristram Shandy.
Com as necessidades realistas do grande público devidamente satisfeitas pela "situação", a "oposição" podia se dar ao luxo de subverter as convenções narrativas e se entregar aos aspectos lúdicos da atividade. Isto não apenas não atrai uma massa de leitores, como tem graça na medida mesma em que exista uma "situação" a combater ou ridicularizar.
Um exame rápido do panorama brasileiro do século XX patenteará uma lacuna: mal temos uma "situação" literária. Quando às vezes esta se manifestou, ela o fez ou no Nordeste de Jorge Amado, ou no Sul de Erico Verissimo, isto é, fora do eixo central Rio–São Paulo, onde deveria justamente ter se mostrado mais vigorosa.
Diante dos tipos de ficção experimentados por autores como José de Alencar e Aluísio Azevedo (ou, no panorama lusófono, por Eça de Queiroz), torna-se fácil constatar que a narrativa machadiana é, por natureza, opositora. Ocorre que, enquanto em outros ambientes nacionais se firmou certa alternância de poder benéfica para ambas as vertentes romanescas, o triunfo no Brasil da "oposição" densamente lúdica foi tamanho que esta eclipsou, até o momento, a "situação", quem sabe desencorajando praticantes potenciais de investirem nela.
O resultado é que quem deseje acompanhar, por meio da ficção, como São Paulo se industrializou ou o Rio se marginalizou, como imigrantes se integraram à vida do país, qual foi a trajetória de famílias como a retratada por Thomas Mann em Os Buddenbrooks não encontrará leituras estimulantes pela frente. Mesmo uma das marcas patenteadas da América Latina, o romance sobre ditadores, não tem uma contrapartida à altura no Brasil, o país que foi governado pelo mais interessante ditador do subcontinente: Getúlio Vargas.
Enfim, por mais que seja cruel culpar Machado de Assis pela falta de ambição e talento alheios, ainda assim é um bom exercício mental imaginar como poderia ter sido nossa literatura caso seu patrono houvesse se revelado mais desafiador e menos inibidor.
Nelson Ascher é poeta, tradutor e ensaíst