O renascimento de Nova Orleans
Política

O renascimento de Nova Orleans


Das águas para o futuro

Três anos depois de ser devastada pela fúria do Katrina, 
Nova Orleans se levanta, sem a ajuda do governo, e vira 
o que ninguém esperava: um criativo laboratório urbano


André Petry (texto) e Gilberto Tadday (fotos), de Nova Orleans

O TIME DOS VOLUNTÁRIOS
1) Bruce McKinley, 44 anos, da Virgínia. É sua terceira vez em Nova Orleans, viajando pela igreja
2) Michelle MacNeill, 34 anos, de Maryland. É seu primeiro trabalho voluntário: "Adorei fazer isso"
3) Eugene Skotzko57 anos, saiu de moto de Fairfax, na Virgínia:"Resolvi ajudar o meu país"
4) Brandon Klein, 27 anos, saiu de Dallas, no Texas. Pertence a uma entidade que ajuda os outros 
5) Nate Hickman, 25 anos, também de Dallas. No próximo voluntariado, ele vai percorrer o Rio Amazonas
6) Dawn Germain, 32 anos, está em Nova Orleans pela segunda vez. Com a irmã, viajou com apoio da igreja
7) Julie Germain, 30 anos, morou em Nova Orleans, saiu antes do Katrina e voltou agora, com a irmã, para ajudar

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"Lá em casa, minha mãe só escutava ópera. Quando ouvi jazz pela primeira vez, fiquei encantada", diz Phoebe Jacobs, que caminha com a ajuda de uma bengala moderníssima, de acrílico incolor torneado, e usa óculos com lentes redondas e roxas. Aos 90 anos, dona de uma memória implacável e uma simpatia exuberante, ela deixou seu apartamento no East Side, em Nova York, e pegou um avião para Nova Orleans com a missão de ajudar a cidade a se reerguer. "O Katrina levou as coisas que se vêem, mas não levou as coisas que não se vêem, como o espírito e a esperança", diz ela, emocionada. Katrina é o nome do furacão que há três anos, na manhã de 29 de agosto de 2005, com ventos indomáveis de até 235 quilômetros por hora, devastou a cidade de Nova Orleans: matou mais de 1 000 pessoas, destruiu dezenas de milhares de casas, prédios, escolas e hospitais, automóveis e barcos e resultou num êxodo de dimensões épicas da cidade então habitada por 460 000 pessoas – 80% da população fugiu para algum lugar. E que ajuda Phoebe deu a Nova Orleans? Agasalho, comida, material de construção? "Jazz", diz ela, escancarando um sorriso. Jacobs dobrou a ajuda, de 20 000 para 40 000 dólares anuais, destinada a um curso de jazz para 100 jovens, de 10 a 20 anos. Em seis semanas, eles estudam tudo sobre jazz: tocam, compõem, escrevem música, gravam CD, produzem show.

A ESTRELA DA TV E A ECOLOGIA
Mike Holmes, que fez fama na TV do Canadá consertando casas: projeto ecológico mantido pelo ator Brad Pitt

Ralph Brennan, 56 anos, foi o primeiro a reabrir seu restaurante em Nova Orleans depois do Katrina. No fim de setembro de 2005, um mês após a catástrofe, o fornecimento de água e energia elétrica da cidade ainda não fora restabelecido, e Brennan, membro de uma família tradicional na gastronomia, já reabrira as portas do Bacco. "Os talheres, os copos, era tudo de plástico. Usávamos água fervida e só servíamos grelhados", relembra ele, cujo esforço lhe valeu o título de "chef do ano" naquele trágico 2005. No mês seguinte ao da reabertura, teve outra recompensa. O presidente George W. Bush e a mulher, Laura, numa visita à cidade, decidiram jantar no Bacco. "Foi uma ótima oportunidade, sobretudo para a minha equipe", diz. A equipe, claro, estava desfalcada. Cerca de dois terços dos funcionários não conseguiram retornar à cidade. Para uma ocasião tão especial, Brennan logrou oferecer luxos raros no pós-Katrina: porcelana chinesa, copos de vidro e talheres de prata. (Numa cidade cuja gastronomia é célebre pelos frutos do mar, e num restaurante especializado em frutos do mar à moda italiana e creole, Bush pediu uma picanha.) Mas que importância podem ter, numa cidade arrasada pelo maior desastre natural dos últimos 100 anos da história americana, um curso de jazz e um restaurante grã-fino?


O FARMACÊUTICO E AS CASAS
Adolph Bynum, farmacêutico que gosta de restaurar casas. Essa aí, só com a fachada, saiu por 30 000 dólares, o preço do terreno

Se a cidade for Nova Orleans, toda. Como em qualquer lugar, Nova Orleans acompanha sua recuperação contabilizando casas reconstruídas, escolas reabertas, ônibus nas ruas. Mas sem o som de um trompete ou uma cumbuca de gumbo, o ensopado típico da região, a cidade não resgataria seu espírito. Logo depois do Katrina, Nova Orleans tinha 22 restaurantes, apenas. Hoje, pelas contas de um especialista, tem 950 casas – uma centena a mais do que antes do Katrina. A fartura levou o jornal da cidade, Times-Picayune, a retomar a crítica gastronômica recentemente. A primeira crítica, depois de três anos, analisou um dos restaurantes dos Brennan, que ganhou nota 3 de um máximo de 5. As boas casas de jazz também estão voltando a lotar, como o Snug Harbor Jazz Bistro, com shows nos sete dias da semana. Ali, Ellis Marsalis, membro do clã de jazzistas, toca às sextas-feiras. "Desde o Katrina, este está sendo o melhor verão de Nova Orleans para os músicos", diz o pianista Jesse McBride, 28 anos, cuja banda anima as noites de terça no Snug Harbor. O maior evento musical da cidade, o festival de jazz, que antes do Katrina atraía 400 000 pessoas, perdeu um quarto de seu público logo depois do furacão. Agora, finalmente voltou ao mesmo patamar. Em maio passado, recebeu de novo 400 000 visitantes.


A ARQUITETURA E O ESPÍRITO
Patricia Gay, que já restaurou mais de 120 casas: "Sem a arquitetura não teríamos o espírito de Nova Orleans"

Com seus muitos filhos e cemitérios, seus tachos cheirando a mar, varandas de ferro forjado e ruas com nomes derramando poesia – Amelia, Magnolia, Feliciana, Anabella –, Nova Orleans está se levantando com seu jeito inevitável de mulher que luta para tirar luz das trevas. Como o Katrina devastou tudo, a cidade está aproveitando o processo de reconstrução para testar, tentar, ousar – e virou o que ninguém esperava: um criativo laboratório de novas soluções urbanas. Seu sistema público de ensino, por exemplo, virtualmente desapareceu: os prédios das escolas foram destruídos, os professores foram desligados. Dos 70 000 alunos da rede pública, um ano depois do Katrina havia pouco mais de 20 000. As escolas do estado de Louisiana estavam entre as piores do país, e as escolas de Nova Orleans estavam entre as piores de Louisiana. Aos poucos, começou a nascer um sistema novo, em que metade dos alunos está em instituições financiadas pelo poder público, mas administradas pelo setor privado. Levas de jovens professores idealistas vêm se mudando para a cidade, animados com a perspectiva de reinventar o sistema aplicando idéias inovadoras. Com isso, Nova Orleans está passando pela mais intensa revolução educacional dos Estados Unidos.


AS CASAS DE JAZZ E O VERÃO
Jesse McBride, que toca numa das boas casas de jazz de Nova Orleans: o melhor verão desde o Katrina

Há um movimento de arquitetos, empolgados com a expectativa de construir casas de baixo custo, testando novas soluções e novos materiais. No Lower Ninth Ward, reduto de pobres e negros, que foi um dos bairros mais duramente atingidos pela catástrofe, a fundação mantida pelo ator Brad Pitt está construindo 150 casas ecológicas, ao custo médio de uns 150 000 dólares cada uma. As casas foram desenhadas pelos mais destacados arquitetos, incluindo o festejado Thom Mayne, cuja casa foi projetada para flutuar em caso de enchente. O construtor Mike Holmes, que virou estrela da televisão do Canadá com o programa Holmes on Homes, em que consertava defeitos em casas mal construídas, é um que se entusiasmou com o projeto. "Falei para o Brad Pitt que eu topava construir uma das casas ecológicas. Ele aceitou, e aqui estamos", diz Holmes, entre uma martelada e outra no telhado da residência de quatro quartos e dois andares que será ocupada pela avó Glory Guy, 68 anos, e seus oito netos. As casas têm energia solar, madeira tratada contra mofo, material reciclado, uso inteligente de energia. Holmes está filmando as etapas da construção e, em janeiro, exibirá um programa de seis episódios que vai ao ar no Canadá e nos Estados Unidos.


A AMIGA E OS DÓLARES
Phoebe Jacobs, 90 anos, amiga de Armstrong e Ella Fitzgerald: ela dobrou de 20 000 para 40 000 dólares a ajuda a curso de jazz

Se, em vez de um orixá, Iemanjá fosse uma cidade, escolheria ser Nova Orleans. Cravada no meio de todas as águas, Nova Orleans tem lago, tem rio, tem mar e, claro, tem chuva. E tem uma longa, dolorosa, implacável história de inundações e enchentes. Numa segunda-feira recente, na esquina da Aycock Street com a South Pamela Place, uma casa de dois andares devastada pelo Katrina remanescia abandonada, com seus destroços de uma vida inteira à mostra. Na garagem, tudo recoberto pela poeira de três anos, havia álbuns de fotografia, cartas, velhos discos de vinil e um recorte de jornal. Era a primeira página doThe Daily Comet, edição de 18 de agosto de 1971, cuja manchete, amarelada pelo tempo, dizia: "Seguro de enchente deve ficar mais acessível". Eis aí a história dos habitantes de Nova Orleans: sobreviver às inundações. Retalhada por canais que a percorrem de norte a sul, do Lago Pontchartrain ao Rio Mississippi, e construída abaixo do nível do mar, Nova Orleans já foi inundada vezes sem conta mas nunca, como no Katrina, a incompetência dos governos – federal, estadual, municipal – foi tão tristemente evidente. Como tantas outras coisas no caso do furacão, a inépcia oficial, paradoxalmente, teve um efeito promissor. Nova Orleans, celebrada por certa indolência caribenha, talvez uma versão americana da molemolência morena brasileira, contrariou o mito, arregaçou as mangas e foi à luta. Sem esperar pelo governo.

BUSH E O RESTAURANTE
Ralph Brennan, dono do Bacco, restaurante onde o presidente Bush jantou logo após o Katrina: copos e talheres de plástico

Patricia Gay, que dirige um instituto de preservação do patrimônio histórico da cidade, já restaurou mais de 120 casas nos últimos trinta anos. Depois do furacão, passou a trabalhar com um sentido de urgência. Sem um tostão do governo, mas com a ajuda de igrejas, ONGs e associações comunitárias. "Sem a nossa arquitetura, não teríamos a comida, a música que temos, não existiria o espírito de Nova Orleans", diz ela, que anda pelas ruas da cidade apontando cada casa que gostaria de comprar para restaurar. "Olha só aquela, que maravilha!" O farmacêutico Adolph Bynum faz da arquitetura um ganha-pão adicional, comprando casas históricas arruinadas, reconstruindo-as e revendendo-as. Sua margem de lucro era de 30%. Com a crise no mercado imobiliário americano, caiu para 20%. Já restaurou 22 casas, algumas das quais não tinham mais que a fachada. No padrão brasileiro, Bynum talvez fosse acusado pelos preservacionistas de especulador imobiliário, sanguessuga da herança arquitetônica da cidade. Em Nova Orleans, tratam-no a pão-de-ló. "Ele é um dos nossos heróis", festeja Patricia Gay. Graças a Bynum, há quarteirões inteiros cujas casas estão novas, com ar de Pelourinho restaurado. "Estive em Salvador duas vezes", ele comenta, e compara. "Salvador tem o mesmo sabor de Nova Orleans."

A reconstrução de Nova Orleans, além de seus próprios habitantes, tem mobilizado uma massa enorme de forasteiros. Neste verão, havia 7 000 voluntários na cidade. A Habitat for Humanity, entidade que já levantou 132 casas para famílias de baixa renda desde o Katrina, recebeu a ajuda de 40 000 voluntários – isso só neste ano. E tudo sem dinheiro público. "Decidi ajudar a resolver os problemas dentro do meu próprio país", diz o voluntário Eugene Skotzko, de 57 anos, diplomata que já rodou o mundo, sobretudo países pobres da Ásia e da África, e acaba de passar um ano no Iraque. Skotzko saiu de Fairfax, no estado da Virgínia, e desceu para Nova Orleans a bordo de sua moto Honda Gold Wing, de 1 832 cilindradas – um transatlântico de duas rodas com GPS e airbag. Ele se uniu a um grupo de jovens mobilizados por sua igreja batista. O papel das igrejas no reerguimento de Nova Orleans, aliás, é notável. Salvadore Janusa, 67 anos, passou três anos num trailer do governo, foi assaltado três vezes e acaba de se mudar para sua casa, reconstruída com a ajuda de voluntários. Ele enumera: "Recebi ajuda de católicos, presbiterianos e batistas. Veio gente de Chicago, Nashville, Memphis e Filadélfia". A maioria dos voluntários é jovem, uns são de meia-idade, como Skotzko, e outros têm 90 anos, como Phoebe Jacobs, que quer ajudar Nova Orleans a chegar ao futuro – e, claro, celebrar a memória de dois dos seus grandes amigos do mundo do jazz: Louis Armstrong ("a pessoa mais amável que conheci na minha vida") e Ella Fitzgerald ("era generosa e adorava Seven-Up e a língua portuguesa").




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