O tango do crioulo doido Roberto Giannetti da Fonseca
Política

O tango do crioulo doido Roberto Giannetti da Fonseca



VALOR ECONÔMICO 



Talvez os leitores argentinos, e nem mesmo os brasileiros mais jovens, tenham entendido o título deste artigo como a analogia que faço a um famoso sucesso musical no Brasil do final dos anos 60. O "Samba do Crioulo Doido" é uma paródia composta em 1968 pelo escritor e jornalista Sérgio Porto, sob pseudônimo de Stanislaw Ponte Preta, que pelo sucesso então alcançado, cunhou uma expressão muito comum até hoje no vocabulário popular, para se referir a coisas sem sentido, confusas, mirabolantes, estapafúrdias, sem nexo.

A analogia que faço ao Brasil de 30 ou 40 anos atrás é porque naquela época vivemos crises sequenciais de escassez de divisas cambiais e de elevada inflação, o que levava os governantes de então a lançar medidas heterodoxas, muitas vezes conflitantes entre si, e sempre com alto grau de intervenção do Estado na economia. Entre elas, recordamos o Programa de Comércio Exterior, que cada empresa pública ou privada brasileira era obrigada a apresentar anualmente para a avaliação da Cacex (Carteira de Comércio Exterior do Banco do Brasil), que por sua vez limitava as importações ao absolutamente essencial e ao que não houvesse similar nacional. Tudo mais seria proibido. A justificativa política para tal extremo era a absoluta escassez de divisas externas para o país fazer frente aos seus compromissos externos de serviço da dívida, de importação de petróleo e demais produtos, e ainda demais serviços de turismo, seguros, royalties, dividendos, etc.

Efeitos das medidas de exceção na política de importação argentina devem ser mitigadas no âmbito do Mercosul

As importações eram autorizadas uma a uma, por meio de Licenças de Importação, liberadas a conta gota pelas autoridades de plantão, sob a vigilância cerrada de um nervoso Banco Central do Brasil. Somente em 1990, a partir do tratamento de choque do Plano Collor e depois do Plano Real, é que essas medidas foram sendo revogadas e o Brasil evoluiu gradualmente na década de 90 para um regime de livre importação e de câmbio flutuante, ainda que com alguns vestígios burocráticos e legais daquela fase, mas infinitamente mais livre do que era na época do "Samba do Crioulo Doido".

Vemos agora o governo argentino adotando políticas de importação semelhantes àquelas da época da Cacex, e nos perguntamos em primeiro lugar: estará a Argentina à beira de um novo colapso cambial? Se a resposta for não, então qual o sentido dessas novas medidas de "Declaración Juramentada de Importaciones"? Se a resposta for sim ou um hesitante talvez, então devemos ser mais uma vez tolerantes com nossos hermanos, e procurar mitigar os efeitos dessas medidas no âmbito do Mercosul. De fato, o mar não está para peixe em 2012: preços de commodities agrícolas em baixa, quebra de cerca de 20% nas safras de trigo, soja, e milho por conta da La Niña, crise financeira internacional, sem a perspectiva de um tostão de crédito novo para a Argentina, e uma tradição portenha de fuga de dólares que precipita as crises cambiais, como se fosse uma autoprofecia.

Isto posto, cabe refletir como poderíamos preservar um mínimo de dignidade moral e jurídica para o Mercosul diante dessas medidas de exceção? Em primeiro lugar, acordando um "waiver" (perdão) antecipado, mas não incondicional. Medidas de exceção têm que ser temporárias e ter prazo de vigência definido (dois anos?). Outra condição que julgo imprescindível seria a de exclusão das importações em moeda local, ou seja, pagos em pesos sem uso das escassas divisas em dólares no âmbito do SML (Sistema de Pagamentos em Moeda Local, que Brasil e Argentina estabeleceram entre si anos atrás, e até o momento foi pouquíssimo usado). Dessa forma, o Mercosul seria relativamente preservado, sem explícita quebra de contrato, ou litígio na OMC e no próprio Mercosul.

Sendo o Brasil superavitário atualmente no comércio bilateral com a Argentina, cremos que o Banco Central do Brasil poderia ficar um pouco desconfortável com a contínua acumulação de pesos em suas reservas (como se o dólar também hoje em dia não causasse apreensões após a farra de expansão monetária que os EUA têm promovido desde 2008). A sugestão que pode ser avaliada seria a de transferir tais reservas em pesos para o Fundo Soberano (que anda sub-utilizado desde sua criação), sob a gestão do Tesouro Nacional, o qual disponibilizaria estes pesos para duas possíveis finalidades: 1) capitalização (equity) de empresas brasileiras com investimentos de expansão ou novas aquisições na Argentina, ou 2) financiamento de médio e longo prazo em pesos pelo BNDES para empresas argentinas e brasileiras na Argentina adquirirem bens e serviços brasileiros para suas atividades locais. Assim, estaríamos mitigando o risco de uma eventual desvalorização da moeda argentina, e promovendo de fato uma maior integração regional, em momento da história no qual a própria União Europeia tem um destino incerto. Dizem que tango é uma música para sempre se dançar a dois: pois então dancemos sem hesitação, e com certa nostalgia, o "Tango do Crioulo Doido".



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