O Globo - 07/12/2011 |
Recebi de uma grande atriz, Arlete Salles, uma mensagem lembrando que, ao classificar como ator um ministro mentiroso, eu ofendia a classe artística. Ela teria razão caso não tivéssemos em mente que as artes foram engendradas pela vida e não o contrário. Como diz Ferreira Gullar: a vida não é suficiente (e por isso precisamos das artes). A "vida real", com seus papéis (e funções) bem marcados, como o de rei, rainha, bispo, plebeu, pai, mãe, trabalhador, ministro, marido, político, professor etc... existe como o "aqui e o agora" do qual não podemos escapar. Esse foi o "princípio de realidade" que simultaneamente desenvolveu a dança, a musica, e toda a dramaturgia que permite ver a vida como ficção: como alguma coisa que permite renascimento, compaixão, redenção e plenitude. No teatro, mente-se quando se representa um papel; mas um ministro mentir, um presidente abusar do seu cargo ou um delegado mandar matar não ocorre num palco onde a peça se repete todo dia e na qual os mortos (que fingem morrer) voltam a viver porque aquilo não é coisa de verdade, mas de novela. No drama, há um inicio, um meio e um fim; mas a vida só termina para os mortos: os que deixam o palco definitivamente. Insisto em falar de atores e papéis para focalizar um tema fundamental da democracia. A velha oposição entre esquerda e direita acabou; a segmentação petista clássica entre nós, os do bem, e eles, os do mal, liquidou-se com o mensalão e toda essa mentirada ministerial envolvendo as ONGs como indústria. Hoje, o desafio é superar o muro entre transparência e obscuridade; entre o legal e o moral; entre a ética que enobrece e o poder que brutaliza. Entre o estado e a sociedade para fazer com que ambos tenham como referência exclusiva o Brasil como um todo, transcendo vaidades pessoais e escusos interesses partidários. Estamos fartos de testemunhar picuinhas do poder, motivos do poder, desculpas e blindagens partidárias do poder que secam oceanos de dinheiro e tornam inimputáveis certas pessoas e cargos. O que dizer quando a presidente decide bater de frente com a sua Comissão de Ética? Queremos uma coletividade integrada e íntegra. Nela, o Estado fala com a sociedade por meio de uma maquina administrativa, guiando-a nos seus projetos e conflitos; mas ele também ouve a sociedade quando ela quer legislações (Ficha Limpa, por exemplo), deseja apurar custos e, acima de tudo, quando ele demanda bom-senso. Queremos que sociedade e estado estejam submetidos a um mesmo código de ética. Não é mais possível conviver com uma máquina estatal cujas engrenagens e atores estão acima do bem e do mal. Não precisamos de pais e mães, exigimos um governo de presidentes, senadores, deputados, governadores, magistrados, prefeitos, procuradores, policiais, ministros e corregedores responsáveis - conscientes dos seus papéis e enredos. O Brasil precisa mais de um projeto que integre pessoas e papéis do que de planos mirabolantes e óbvios porque são inexequíveis. Um país rico é, sem dúvida, um país sem pobres e famintos, mas é sobretudo um país no qual as instituições destinadas a liquidar com a indigência e a fome trabalhem com afinco e sejam dirigidas por gente honesta. Estou falando no deserto? De modo algum. Numa importante entrevista ao jornal "O Estado de S. Paulo" (em 28 de novembro), José Eduardo Martins Cardozo, nosso ministro da Justiça, toca em alguns destes pontos com claridade e veemência, quando se refere - entre outras coisas - a um alegado conluio das corregedorias. O corporativismo que "blinda" e eventualmente produz corrupção nada mais é do que a apropriação pelos atores de papéis que pertencem ao estado e à sociedade à qual ele deveria servir. O segredo do bom desempenho de um papel está na consciência dos seus limites. Não se pode "fazer" Julio Cesar usando um relógio de pulso. O papel não pertence ao ator, mas ao autor e ao drama. Por isso a observação feita pelo ministro Cardozo segundo a qual "é mais fácil modificar um governo do que uma cultura" é não somente correta, mas importante como um tema a ser profundamente debatido. Do mesmo modo, o papel de ministro não é de X, Y ou Z, mas do governo e do Brasil. Todo mundo distingue teatro de política, embora haja teatro na política e vice-versa. Mas quando Hitler manda exterminar judeus ou um governo autoritário persegue opositores, isso não é teatro. No teatro, salvo acidente, ninguém morre de verdade. Papéis sociais permitem muitas inovações. Mas aqueles que são corporativos e outorgados através de uma investidura (ou investimento - aquilo que "veste" seus ocupantes que não são atores), sobretudo os que são obtidos por nomeação ou eleição competitiva e liberal, esses fazem com seus ocupantes sejam seus "cavalos" e não os seus cavaleiros. Numa sociedade de massa, globalizada, na qual a informação circula em tempo real; numa democracia cuja bandeira é liberdade e igualdade, exige-se um mínimo de coerência institucional, e essa coerência é regulada pelo ajustamento entre as demandas dos papéis e as capacidades das pessoas que os ocupam. A abolição da hereditariedade de papéis públicos é o fato mais básico das democracias modernas. O outro, é a sujeição à regra da lei de todos os seus membros. Não são as pessoas que mandam nos papéis, mas o justo oposto. Sem distinguir papéis e atores ficamos prisioneiros de maquinações. A pior foi mencionada pelo ministro da Justiça. É, de fato, impossível acabar com a corrupção, desde que não se abandone a luta contra ela. No centro deste combate está a obrigação de não confundir pessoas com papéis. |