Talvez como prova de que nem tudo está perdido neste nosso Brasil obcecado pela disputa eleitoral, Marina Silva mudou o penteado: tirou o coque e soltou o cabelo.
No meio de um tiroteio que o nosso viés aristocrático rejeita como de mau gosto, esse é o fato alvissareiro desta etapa derradeira que vai confirmar ou não o governo lulopetista e mendaz de Dilma Rousseff.
Antigamente, quando os bichos falavam e os animais (sobretudo os burros e os gorilas) não faziam parte do governo, mulheres e homens iam sistematicamente a barbeiros e cabeleireiros e, de vez em quando e para a surpresa dos amigos, colegas e maridos, mudavam de penteado.
A expressão falava de algo além do cuidado regular com o cabelo, porque mudar parte do rosto chamava atenção imediata. Mudar o cabelo ou a cabeleira (ampliando-a, mudando sua forma ou cortando-a) ressaltava uma transformação radical da aparência e da "figura", sugerindo novos projetos de vida e mudanças de posicionamento social.
Sir Edmund Leach, um colega inglês dotado de excepcional talento e extrema generosidade, escreveu, em 1958, um ensaio denominado "cabelo mágico" , no qual ele observa como o estilo do penteado exprimia estados emocionais e sociais profundos. O cabelo, diz este ensaio — editado num volume que publiquei pela Editora Ática na coleção Grandes Cientistas Sociais, dirigida por Florestan Fernandes em 1983, sob o título "Edmund Leach" —, vai muito além do penteado. Discordando do axioma freudiano segundo o qual o cabelo se associa a manifestações do desejo libidinal, Leach revela que o seu sentido ou significado varia de cultura para cultura.
Muitos cabelos fogem do cânone freudiano como um símbolo fálico e crescer e ser cortado nos homens como um sinal de castração ou controle sexual. Elas mostram também que, em muitas sociedades, o seu estilo está ligado ao luto, à homossexualidade, à fertilidade, à gravidez e a outros estados sociais, os quais não têm um elo direto com a sexualidade.
No mundo ocidental, por exemplo, o cabelo longo se associa à mulher dona de sua vida sexual, embora, como se sabe, o corte do cabelo de Sansão por Dalila foi decisivo como um golpe que fez com que o superjudeu (que prefigura o Super-Homem americano moderno) perdesse temporariamente suas forças.
A essas alturas, o leitor pode estar espantado pelos caminhos que o desmanche do coque da Marina Silva está me conduzindo. Mas vale enfatizar que a ideia de controle, disciplina, agressão e repressão está muito mais próxima de cabelos raspados, presos ou curtos (como em algumas ordens religiosas e profissões — os militares e professoras — por exemplo); enquanto o cabelo longo, desgrenhado, acompanhado de uma barba igualmente ouriçada, denota um desdém e um engajamento crítico com a ordem vigente. O melhor exemplo gráfico disto é o famoso retrato do jovem Karl Marx, por oposição a uma estátua de Júlio César ou a foto de um membro das SS. Todos os românticos, bem como os hippies e os renunciantes deste mundo que vai se acabando, desdenhavam o cabelo brilhantinado e cuidadosamente penteado. Aliás, neste Brasil onde abundam meninos-prodígios de todo tipo, todos penteiam despenteando seus cabelos dentro do modelito Beethoven ou Einstein — os prodígios dos prodígios.
O cabelo solto ou liberto do coque tem um sentido oculto. Ele fala de um engajamento expressivo de Marina ao desejo de emancipar o Brasil do lulopetismo. Curioso, mas psicanaliticamente fascinante, esse despentear de Marina num momento em que o processo eleitoral atinge um estágio crítico e também começa a modernizar os seus debates que muitos gostariam que continuassem como aqueles jantares regados a valsa do Itamaraty.
Um aluno comentou que o vale-tudo petista é legítimo. Afinal, dizia, como num jogo de futebol, todos querem ganhar. Ele tem razão, mas com sérias reservas. O jogo tem como base a igualdade dos times porque todos obedecem às mesmas regras. Ademais, os times têm como referência o juiz, a torcida e os manuais que não mudam durante o seu desenrolar.
Já numa eleição como esta, há um candidato que é um óbvio controlador das regras porque ele é o governo com um viés antiliberal. Neste contexto, ser obrigado a vencer pelo bem do time transforma a disputa numa batalha de aleivosias. Se a paixão pelo poder for maior do que o respeito institucional, não pode haver jogo limpo. Um dos times — o que controla as regras ao mesmo tempo em que joga — abre mão de realizar o mandamento crítico de qualquer democracia: o dizer não a si mesmo.
Mas contra isso, eis como um presságio, o cabelo solto de Marina.
Roberto DaMatta é antropólogo
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