A ideia do governo era "passar uma risca de giz" entre a nova equipe econômica e a anterior (O GLOBO, 25/11). A analogia é sugestiva, mas ambígua. De um lado, parece conferir nitidez à linha divisória que separaria as políticas econômicas dos dois mandatos. De outro, sugere pouco mais do que uma linha imaginária arbitrária que, por si só, não seria capaz de assegurar reorientação tão marcada da política econômica.
A intenção inicial do Planalto era só anunciar a nova equipe quando estivesse terminado o trabalho sujo de empurrar goela abaixo do Congresso a ruidosa adulteração da LDO, e o governo, aliviado, pudesse alardear que a meta de superávit primário de 2014 havia sido cumprida, mesmo que, de fato, as contas apontassem um déficit. Mas, com o esperneio do Congresso, o circo de horrores montado pelo Planalto no Legislativo, para viabilizar esse grand finale de falsificação das contas públicas, não pôde ser desmontado a tempo.
O espetáculo de irresponsabilidade fiscal acabou sendo mais prolongado do que se esperava. E, afinal, a essência vergonhosa da mudança da LDO só pôde ser aprovada já do lado de cá da risca de giz, quando a nova equipe econômica tinha começado a esboçar discurso mais consequente. Para culminar, o governo aproveitou a demora para se permitir mais uma "saideira": novo repasse de R$ 30 bilhões ao BNDES. O pretenso cordão sanitário entre o regime fiscal antigo e o novo foi rompido logo na primeira semana.
Joaquim Levy tem todas as credenciais técnicas para enfrentar o desafio de botar ordem na deprimente mixórdia fiscal em que terminou o governo. O Planalto lavrou um grande tento ao conseguir convencê-lo a aceitar o cargo de ministro da Fazenda em condições tão adversas, mesmo estando ele plenamente ciente de que terá de lidar com uma cúpula de governo que não comunga com a maior parte das ideias que terá de implementar.
Conspira contra Levy o fato de que, dificilmente, os frutos da pesada agenda que tem pela frente poderão ser colhidos em menos de dois anos. Em contraste com a decantada experiência de Antonio Palocci, no início do primeiro mandato do presidente Lula, desta vez a colheita de resultados promete ser muito mais tardia.
Em 2003, as circunstâncias eram bem mais favoráveis. Em poucos meses, a crise de confiança foi superada, a brutal depreciação cambial de 2002 foi revertida, a taxa de juros despencou e, na esteira do boom de preços de commodities e de um quadro fiscal muito mais sólido, a economia voltou a crescer a taxas relativamente altas a partir de 2004, com melhora das contas externas e inflação na meta.
Como agora não há perspectiva de resultados rápidos, o novo ministro da Fazenda está fadado a enfrentar dificuldades cada vez maiores, em decorrência da falta de convicção do Planalto — e do PT — sobre a agenda de política econômica que se faz necessária.
Basta ter em conta o enorme desafio imediato de converter um déficit primário da ordem de 0,5% do PIB, em 2014, em superávit primário de 1,2% do PIB, em 2015, como já anunciado por Joaquim Levy. É difícil que um ajuste fiscal dessa magnitude — 1,7% do PIB — possa ser viabilizado, ao longo de um único ano, só por contenção de dispêndio.
Parcela substancial do ajuste terá de advir do aumento de receita. Em vez de recorrer a formas exóticas de tributação, faria mais sentido desmontar boa parte do desengonçado programa de desoneração da folha de pagamentos que, nos últimos anos, converteu o financiamento da Previdência Social em indefensável colcha de retalhos, em que cada setor recolhe uma alíquota diferente de contribuição patronal sobre faturamento.
É pouco provável, contudo, que o novo ministro do Planejamento e a própria presidente da República concordem com a desmontagem desse impensado programa de desoneração, em cuja concepção estiveram profundamente envolvidos.
Será preciso bem mais do que uma risca de giz para que a presidente Dilma passe a ter as convicções necessárias para dar respaldo continuado e duradouro a Joaquim Levy.
Rogério Furquim Werneck é economista e professor da PUC-Rio