Por Altamiro Borges
Em agosto de 2007, aproveitando-se oportunisticamente do trágico acidente com um voo da TAM em São Paulo, Ivete Sangalo participou do lançamento do movimento “Cansei”, organizado por forças direitistas contra o governo Lula. Junto com a falecida Hebe Camargo, a global Ana Maria Braga e a medrosa Regina Duarte, a cantora baiana dispensou o cachê para o outdoor do movimento. Mas o mundo dá voltas e hoje é Ivete Sangalo que gera “cansaço” em alguns setores da sociedade. De pedra, ela agora virou vidraça.
No final de janeiro último, a sua contratação milionária para o show de inauguração de um hospital no município de Sobral, no Ceará, resultou numa ação do Ministério Público Federal. O cachê da cantora foi de R$ 650 mil e o procurador da República, Oscar Costa Filho, solicitou que o governador do estado, Cid Gomes, restituísse os recursos aos cofres públicos. Segundo denunciou, a grana para pagar Ivete Sangalo foi retirada do Fundo Municipal de Saúde (FMS), o que é ilegal e imoral. A pendenga segue na Justiça.
Já hoje, na Folha, o presidente do grupo afro Olodum, João Jorge Rodrigues – que é advogado, mestre em direito público pela Universidade de Brasília (UnB) e membro do conselho curador da Empresa Brasil de Comunicação (EBC) –, afirmou que a Bahia virou “terra de uma artista só: Ivete Sangalo”. Em entrevista ao repórter Nelson Barros Neto, ele criticou a elitização do carnaval. Ivete Sangalo, a “ex-cansada” da direita nativa, não deve ter gostado muito das críticas. Reproduzo alguns trechos da entrevista:
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Enquanto cresce a participação popular em blocos de rua no Sudeste, o Carnaval é criticado na academia e por referências do samba e do próprio axé.
O Carnaval do país é um retrato do Brasil atual. Ele é um Carnaval discriminatório, segregado, com mecanismos que reproduzem o capitalismo brasileiro: a grande exclusão da maioria em beneficio de uma minoria.
Seria ingenuidade esperar que no Carnaval de Salvador, de São Paulo, do Recife ou do Rio nós tivéssemos democracia, oportunidade, igualdade. Você passa 359 dias no ano praticando toda forma de violência institucional, de racismo institucional, e você quer que em seis dias o Carnaval seja democrático?
A situação é pior na Bahia?
Aqui, ainda mais. Você tem um segmento que tem os melhores patrocínios, maior visibilidade, todos os recursos. Há cordas separando os blocos do povo.
Estamos falando da possibilidade de o Carnaval ser mais generoso. Além de ser uma festa da alegria, proporcionar também àqueles que fazem cultura ter apoios tão generosos quanto o de quatro grupos.
Mas é ilusão achar que isso mudará em curto prazo. Os atores que podiam brigar por isso estão às vezes mais preocupados em fazer parte do jogo.
O chamado 'Afródromo' ajuda ou atrapalha o cenário? [a iniciativa de Carlinhos Brown e outras seis entidades de criar um novo circuito, exclusivo para os blocos afro, estrearia neste ano, mas foi adiada pela nova gestão na prefeitura]
O Olodum tem brigado muito para sair mais cedo e poder ser visto pela televisão. Para que empresas patrocinem de forma equitativa os blocos afros.
Ao mesmo tempo, eles resolveram fazer algo separado. O que a sociedade mais quer é que os negros escolham um gueto para ir e se afastem da disputa com eles. É como se soubéssemos o lugar em que deveríamos ficar, em vez de aparecermos na Barra, no Campo Grande.
Mais ainda: obriga o poder público a ter gastos com outro circuito, quando os recursos poderiam ser distribuídos de uma forma melhor.
Até que ponto o monopólio afeta a festa, a música local?
A diversidade, que antes era a riqueza do Carnaval, foi diminuindo, e hoje o Ilê Aiyê, os Filhos de Gandhi, a Timbalada e o Olodum correm um pouco no meio disso.
Mas nos demais lugares você não tem novidades. A Bahia virou a terra de uma artista só. Parece que os outros estão todos mortos.
Isso mata os artistas emergentes, mata os que estão trabalhando e, em vez de fortalecer essa própria artista, a fulmina, porque é a galinha dos ovos de ouro aberta para pegar ovos. A festa faz de conta que está enriquecendo uma pessoa, mas na verdade está empobrecendo uma cidade, um Estado.
A pessoa é Ivete Sangalo?
Sim, ela.
(...)
E Claudia Leite? Parte do público e da crítica diz que ela tenta repetir Ivete, que não teria identidade...
Não posso falar disso, porque esse é um problema dessas cantoras, desse tipo de personalidade cuja força é o caráter étnico. A força delas é que são cantoras brancas. Se elas se imitam ou não, não posso dizer nada, é o mercado que elas escolheram. De serem cantoras brancas, que dominam todo o mercado de publicidade, todo o mercado de shows, e que uma compete com a outra.
Recentemente, uma delas colocou o filho para subir no palco, e a outra fez o mesmo.
E tem a gravidez de cada uma, tudo que é feito para gerar noticia. Estou preocupado inclusive com Spike Lee, para ele não engravidar ninguém aqui nesse período [risos], para criar notícia, entendeu?
Agora, um fato é importante: elas exercem um papel importante na música brasileira e souberam dar um ar profissional a isso que é uma resposta também às demandas da própria comunidade negra. Você, com ótimas cantoras negras aqui, numa cidade de maioria negra, não capitalizar isso é um erro estratégico. Para você ver a força do racismo e da alienação. As cantoras negras da Bahia seriam milionárias nos EUA.