O Estado de S. Paulo - 23/01/2012 |
A melhor coisa do ano que passou foi uma substancial redução do risco de uma catástrofe, detonada a partir de uma eventual quebra de alguma instituição bancária na Europa. Há uma concordância geral de que, se um evento de crédito tivesse ocorrido, a crise que se seguiria iria levar o mundo a uma situação pior do que aquela que foi detonada pela quebra da Lehman Brothers, em 2008. O que virou o jogo foi a atuação do Banco Central Europeu (BCE), após a posse de Mario Draghi como presidente da instituição, no fim de outubro. Suas armas: a continuidade da compra de papéis soberanos de países do sul da Europa, uma redução nos juros básicos e uma gigantesca oferta de euros, da ordem de 500 bilhões, tomada por mais de quinhentos bancos, ainda no fim de 2011. Uma segunda oferta de dinheiro longo está programada para o fim de fevereiro. Essa expansão do crédito tornou o balanço do BCE maior que o do Fed (US$ 2,9 trilhões no caso do Fed e US$ 3,2 trilhões para o BCE, nos dados de novembro), algo bastante surpreendente para um banco central famoso pelo seu conservadorismo. É curioso que os alemães, até então tão críticos a qualquer movimento mais ousado por parte das autoridades monetárias, não tenham feito uma única crítica pública ao BCE. Pode ser apenas coincidência, mas talvez tenha colaborado para o silêncio o fato que, na mesma ocasião, um grande banco alemão tenha frequentado as primeiras páginas dos jornais como resultado de fortes rumores de dificuldades e de escassez de recursos. Nada como um incêndio no quintal de casa para impor uma certa dose de pragmatismo. Esses movimentos sinalizaram aos mercados que nenhuma instituição financeira iria quebrar e, como consequência, a temperatura do mercado baixou, com redução da volatilidade, medida pelo índice VIX da faixa de 30 para a faixa de 20. A rolagem das dívidas de Itália e Espanha começou a ser feita em volumes expressivos e a taxas cadentes, o que ainda se mantém. Por exemplo, as taxas para os papéis soberanos de um ano, que em meados de novembro haviam atingido insustentáveis 6,1% para a Itália e 5% para a Espanha, recuaram para 2,7% e 2%, respectivamente, em meados de janeiro. Continuando assim, as pesadas rolagens previstas para este primeiro trimestre poderão ser realizadas em condições mais razoáveis. Draghi enfrentou e ganhou, felizmente, do conservadorismo dos alemães (que, seguido ao pé da letra, implicaria uma gigantesca crise bancária), sem trombar de frente com eles. Ao mesmo tempo, deixou claro que a política do BCE tem de ser complementada por movimentos na área fiscal e políticas que recuperem a capacidade de crescer do sul da Europa, sem o que o fim do euro será inglório. Essa visão, que me parece correta e está cada vez mais clara, foi exposta com grande habilidade e contundência pelo chefe de governo da Itália, Mario Monti. Em recente visita à chanceler Angela Merkel, o premiê italiano apresentou os primeiros resultados, muito positivos, de seu ajuste fiscal: no terceiro trimestre de 2011, o déficit nominal do país recuou para 2,7%, número inferior aos 3% do famoso critério Maastricht. No ano, certamente o número é pior, mas é perfeitamente razoável esperar que a Itália cumpra suas promessas fiscais e comece a avançar em algumas reformas. Entretanto, Monti declarou que, se a Alemanha e outros líderes não se movimentarem para garantir o crescimento da Europa como um todo e com isso dar perspectivas de melhoria aos cidadãos do seu país, todo o esforço realizado poderá ser perdido por falta de suporte político. De fato, é uma hipótese bem razoável admitir que a recessão resultante do ajuste provoque desgaste político, o que poderá abrir a porta para a ação de populistas radicais, faturando fácil em cima do sofrimento da população. Não se trata, pois, de realizar apenas dolorosos ajustes, embora esses sejam mais que necessários em muitos casos. Será indispensável restabelecer a confiança na população de que o crescimento futuro vai compensar o sacrifício presente e, para tanto, o papel estimulador das economias líderes é indispensável. A Itália mostra que tem muitos líderes valorosos, a despeito de um lamentável capitão de navio. Por isso, o ano de 2012 começa melhor, quando comparado com a situação de setembro/outubro, mas ainda será muito difícil, pois a agenda de decisões segue sendo muito pesada. A volatilidade pode ainda voltar a se elevar, pois nem de longe está seguro que o euro vai acabar por prevalecer. Apenas é certo que a maioria dos países, senão todos, tem forte compromisso com a manutenção da moeda comum. Desvalorização. A ação do BCE também foi decisiva para levar a uma desvalorização do euro, condição necessária, mas não suficiente, para a continuidade do projeto da integração da Europa. Até novembro, o sistema financeiro vivia muito pressionado, numa situação de baixa liquidez, uma vez que a captação de recursos no mercado local e no americano ficou difícil, tendo em vista os riscos crescentes associados à questão da dívida grega e de outros países. A partir de novembro, o euro começa realmente a se desvalorizar, em resposta à forte expansão monetária, devendo chegar a 1,2 por dólar em prazo não muito longo. Não é improvável que acabe, mais adiante, por buscar a paridade. Como colocou o professor Barry Eichengreen aqui no Estado, 2012 poderá ser o ano do dólar. Como muitos ativos americanos estão baratos (bolsa, imóveis, plantas industriais, etc.) e a perspectiva de crescimento para 2012 naquele país é bem mais favorável, um fluxo crescente de capital se deslocará para lá. A desvalorização do euro tem também uma implicação relevante no mercado de commodities. Existe aqui uma correlação estabelecida há tempos: uma desvalorização da moeda americana leva a uma compensação, aumentando as cotações em dólares das mercadorias. Alternativamente, uma valorização pressiona para baixo os preços em dólares dos diversos produtos. Por exemplo, entre meados de outubro e 17 de Janeiro deste ano, o euro perdeu pouco mais que 10% em relação ao dólar, enquanto o índice CRB de produtos agrícolas recuou 9,7%. Em minha interpretação, o ajuste entre as moedas é muito mais importante do que o efeito da crise sobre a demanda. Os dados internacionais não mostram nenhum recuo da demanda, dado o crescimento dos países emergentes. O mesmo vale para o petróleo e a maior parte dos metais. A grande exceção nesse grupo é o aço, onde uma gigantesca capacidade ociosa pesa nas cotações; também o preço do gás natural, em forte queda nos EUA, é facilmente explicado pela enorme elevação na produção do chamado "shale gas", a que já fizemos referência neste espaço. No Brasil, a valorização do dólar se reflete na cotação do real. Embora a entrada de recursos financeiros possa vir a reduzir as cotações do dólar ante o real, até aqui os preços de alimentos pouco ou nada caíram. O BC estava correto ao prever forte piora na crise em meados do ano, embora hoje reconheça que o risco de uma crise bancária arrefeceu muito. Entretanto, o efeito deflacionário da crise não ocorreu, pelo menos até agora. Outra implicação da nova situação é que os produtos provenientes da Europa ficarão muito competitivos, especialmente maquinário, onde a diferença de qualidade e de melhor assistência técnica em relação aos chineses é bem grande. A indústria nacional continuará desafiada. |