A audácia dos bandidos da Somália
Política

A audácia dos bandidos da Somália


A nova era da pirataria

Os ataques a navios de carga no Chifre da África
são agora o negócio mais rentável da Somália,
um país sem lei, sem governo e sem riquezas


Thomaz Favaro

Veronique de Viguerie/Reportage by Getty Images
ARMAS MODERNAS
Piratas somalis prontos para ir à caça de navios e, no detalhe, o bote, amarrado ao Bainbridge, em que três deles foram mortos


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Em pleno século XXI, tempo de economia (e crise) globalizada e da tecnologia que reúne a humanidade numa grande aldeia chamada internet, o mundo está às voltas com problemas causados por aquela que é, provavelmente, uma das duas mais antigas profissões – a pirataria. O foco atual de preocupação são os ataques a navios de carga que trafegam pelo chamado Chifre da África. Na semana passada, a Marinha dos Estados Unidos, a mais poderosa força naval existente, foi mobilizada para combater um grupo de piratas somalis a bordo de um minúsculo bote salva-vidas. Os bandidos haviam atacado o cargueiro Maersk Alabama, de tripulação americana, que transportava donativos para a África Oriental. Os tripulantes reagiram e os piratas foram expulsos, mas levaram como refém o capitão Richard Phillips. Com autorização do presidente Barack Obama para atirar para matar, os franco-atiradores da Seal, a força de elite dos fuzileiros navais, esperaram por um momento propício – aquele em que os três sequestradores pudessem ser abatidos ao mesmo tempo, de forma a preservar a vida do refém. Foram disparados três tiros certeiros e simultâneos com um fuzil especial para esse uso – provavelmente um M107 –, equipado com mira de visão noturna.

Foi uma semana ruim para a pirataria na costa africana. A Marinha francesa conseguiu resgatar os tripulantes de um veleiro sequestrado pelos piratas somalis e ainda evitou o ataque a outro cargueiro, capturando onze dos assaltantes. A questão que fica em aberto é como essas derrotas afetarão a atividade bucaneira. O Chifre da África é hoje o ponto mais perigoso para a navegação marítima, concentrando um terço de todos os ataques de piratas efetuados no mundo. O Golfo de Áden, que liga o Oceano Índico ao Canal de Suez, é uma rota vital do comércio mundial. Por ali passam 20 000 navios por ano e 12% do comércio de petróleo. Vinte navios de guerra de várias nacionalidades já patrulham a região, mas a imensidão das águas – quatro vezes o tamanho da França – dificulta a missão. Para despistar, os piratas passaram a atuar cada vez mais longe da costa. Alarmes falsos emitidos por marinheiros nervosos dificultam ainda mais o monitoramento. O custo dos seguros para os navios que trafegam pela costa somali foi multiplicado por dez no último ano. Numa demonstração de arrogância e poder de fogo, os piratas capturaram outros quatro navios após o resgate do capitão Phillips. Ao todo, vinte embarcações e 300 marinheiros permanecem no cativeiro, enquanto o pedido de resgate é negociado.

Betman/Corbis/Latin Stock
PRAGAS DOS SETE MARES
Visão artística da captura do pirata Barba Negra, em 1718

A bandidagem no mar é um reflexo da anarquia em terra. Primeira colocada na lista dos países falidos, a Somália é uma terra miserável, sem lei nem governo. A maior parte da população é nômade e pastoril, e a fome é uma ameaça constante. Independente desde 1960, o país foi arruinado por duas décadas de "socialismo científico", como se autodefinia a ditadura de Mohamed Siad Barre. Desde sua queda, em 1991, a Somália está sem governo central. O território foi fatiado por clãs e caudilhos rivais. Agora, o sul está nas mãos de milícias islâmicas inspiradas no Talibã e duas províncias do norte se declararam estados independentes, que não foram reconhecidos por nenhum país. Forças da ONU e da União Africana em missão de paz não se arriscam a ultrapassar os limites da capital, Mogadíscio. Não fosse o estrago causado por seus fora da lei, seria fácil para o mundo manter distância da bagunça na Somália, um país irrelevante do ponto de vista econômico e geopolítico. Mesmo quem tenta ajudar acaba mordido. Uma expedição militar americana com a missão de garantir a distribuição de ajuda humanitária acabou em desastre, em 1993. Dois helicópteros foram abatidos no centro de Mogadíscio e dezoito soldados acabaram massacrados nas ruas da cidade – episódio que chegou aos cinemas com o filme Falcão Negro em Perigo. É difícil acreditar que os americanos queiram desembarcar novamente naquelas praias selvagens.

AP
PIRATAS A BORDO
Somalis mantêm reféns no veleiro francês Tanit, na semana passada: um refém morto


A pirataria existe desde que a humanidade passou a usar as águas como rota de comércio. Os gregos já pilhavam navios fenícios e egípcios no século VIII a.C., segundo relata Homero na Odisseia. Em 75 a.C., o jovem Júlio César foi capturado por piratas cilicianos no Mediterrâneo e pagou resgate de 50 talentos – o equivalente a 2 toneladas de prata. Ao contrário da imagem romântica do pirata solitário criada pela literatura, a pirataria quase sempre é um empreendimento organizado, com investidores, e muitas vezes recebe o patrocínio do estado. No século XVI, a coroa inglesa concedia autorização aos corsários para saquear navios e colônias de seus inimigos, particularmente os espanhóis. O capitão William Kidd, pirata que, a se acreditar na lenda, deixou tesouros enterrados nas praias do Caribe, era o homem mais rico do Império Britânico ao ser enforcado, em 1701.

A costa africana é uma base tradicional da bandidagem marítima. Durante três séculos, o Marrocos, a Tunísia e a Argélia, países da chamada costa berbere, foram estados piratas. Sultões e xeques equipavam galés e veleiros em troca de participação no butim. Estima-se que mais de 800.000 europeus tenham sido sequestrados pelos piratas berberes para ser trocados por resgate ou vendidos nos mercados de escravos. Muitos armadores e governos pagavam tributos aos chefes berberes para garantir uma travessia segura pelo Mediterrâneo e pelo Oceano Atlântico. Logo após a independência, o governo dos Estados Unidos chegou a gastar um quinto de seu orçamento com o pagamento de resgates e tributos aos piratas da África do Norte. O problema era tão sério que a primeira missão da Marinha americana foi libertar concidadãos capturados na Líbia. A pirataria só acabou na região depois da conquista da Argélia pela França, em 1830.

AP
PRISÃO NO MAR
Franceses capturam piratas na costa do Quênia: operações de sucesso são exceção

A equação entre lucro e risco, a máxima dos negócios em todos os tempos, explica a persistência da pirataria no século XXI. O transporte marítimo responde por 90% do comércio mundial. Como é difícil patrulhar a imensidão do mar diante de uma costa sem lei, os proprietários dos navios preferem pagar o resgate a pôr em risco a vida de seus funcionários ou a carga. Nos últimos anos, os bandidos somalis têm se destacado pela audácia e pela sofisticação de suas operações e equipamento. No início, eram pescadores que encontraram na pilhagem uma oportunidade de riqueza fácil. Empresários e políticos locais entravam com o dinheiro para a compra de barcos e armas em troca de uma fatia do lucro. O retorno é altíssimo. No ano passado, os piratas faturaram 150 milhões de dólares em resgates – dez vezes o total de doações internacionais recebidas pela Somália. "O crime marítimo no país tornou-se tão rentável que a situação se inverteu", disse a VEJA o alemão Peter Lehr, especialista em terrorismo e pirataria da Universidade de St. Andrews, na Escócia. "Agora, são os piratas que emprestam dinheiro e financiam os senhores de guerra na Somália." Em Eyl e Harardere, cidades que servem de base de operações, os piratas desfilam em carrões e mandam construir mansões com vista para o mar. A ostentação contrasta com a pobreza geral do país. A sobrevivência de 3 milhões de somalis depende da ajuda humanitária internacional – como os alimentos a bordo do navio Maersk Alabama, que foi atacado pelos piratas.

Com reportagem de Leandro Beguoci




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