No futebol se furtam milhões do dinheiro dos impostos, entre outras indignidades, mas não se considera respeitável que um rapaz tire a camiseta na explosão destampatória da alegria algo doida de ter feito um gol, com o que será punido.
Essa noção de decoro diz algo a respeito dos valores do futebol. O relativo descaso pelo problema do "juiz ladrão" diz outro tanto sobre a ideia de "fair play padrão Fifa".
O tema do "juiz ladrão" é recorrente como o do amor traído, mas reaparece de modo mais intenso nas Copas, de audiência bilionária. Ora tratamos das garfadas em gols contra Croácia, México e Espanha, mas basta teclar na internet para rever escândalos piores noutro mundial quase qualquer.
Os vexames na África do Sul serviram para acabar com a resistência a uma tecnologia mínima para evitar injustiças (a bola eletrônica, que acusa gols). Mas já é possível fazer mais, da revisão de jogadas com uso de replay (nem sempre simples) a tecnologias que flagram impedimentos, mão na bola e até, dizem, jogador cai-cai.
"Juiz ladrão" apareceu até aqui entre aspas porque oportunidades fazem o ladrão, mas erros de arbitragem, nem sempre. Bom senso e estudos biofísicos mostram que em certas situações é humanamente impossível ser preciso no apito.
Há estudos, porém, a indicar que donos da casa, por exemplo, são mais favorecidos por juízes. Sim, claro, há jogos arranjados por corrupção simples (dinheiro) e política. Menos simples é entender a repulsa dos donos do jogo à tecnologia.
Numa entrevista, faz 19 anos, perguntei a João Havelange, então presidente da Fifa, o motivo da rejeição. Ele me perguntou se eu conhecia tais e quais escândalos de arbitragem; sim, conhecia. Pois então, dizia o homem, discutir eternamente erros e ladroagens era parte da graça do futebol; preservava a memória do jogo até para (então) jovens como eu e a "humanidade simples" desse esporte. Ainda hoje, seu sucessor em posto e alma, Sepp Blatter, usa o mesmo argumento. A quem interessa?
O futebol começou a ser "profissional" na Inglaterra ainda no século 19, mas se tornou empresa grande e transnacional no início dos 1990. Clubes e jogo se tornaram propriedade direta ou indireta de empresas de TV, depois conglomerados de mídia, em parte graças à difusão de TV por satélite ou cabo e a outras mumunhas do "capital mundializado". A venda de direitos de transmissão e o marketing esportivo explodiram nessa época, apesar de parecerem eternos.
Mas pouco se fez a respeito de erros e picaretagens em campo, que não parecem de interesse da dúzia e meia de times (e grupos de mídia) que manda no futebol do mundo (além das federações). Não se trata de vergonha na cara aqui, mas de, repita-se, interesse do negócio, em tese.
O negócio tem movido a Copa para países sem infraestrutura (estádios ou outras: negócios para empreiteiras, consultorias e governos). A politiquice faz a Fifa escalar juízes do quinto mundo. Interesses diversos fazem do futebol centro de evasão e lavagem de dinheiro.
Tudo isso é compreensível, se inaceitável. Já a persistência do "juiz ladrão" nos níveis mais altos do negócio do futebol é algo mais misteriosa.