O projeto Café de los Maestros, que recria clássicos
dos anos 30 aos 50, mostra por que esse gênero
continua a ser a melhor tradução da Argentina
Sérgio Martins, de Buenos Aires
Fotos Lailson Santos |
BANDONEON PARA TODA A VIDA |
Em 1931, Aníbal Arias tinha 9 anos e estudava violão erudito quando pregou uma peça em seu professor: trocou as escalas de um concerto de Beethoven por um tango que escutara a caminho da escola. "Toque outra nota dessa canção degenerada e eu nunca mais darei aulas a você", rosnou o mestre. O tango, então, acabara de passar por uma de suas primeiras mutações. As letras pornográficas, que limitavam sua execução às casas de má fama de Buenos Aires, haviam dado lugar a letras sobre desilusões amorosas. Mas os músicos ainda não se convenciam de sua qualidade. A ironia é que, hoje, poucos gêneros são tão representativos do espírito de um país quanto o tango o é da Argentina. Sua influência está presente na literatura (o ritmo já foi abordado por escritores como Jorge Luis Borges e Tomás Eloy Martínez) e na maneira como os platinos encaram a vida. "O tango é a cultura da vítima e a única ocasião em que nós, argentinos, somos intensos", disse o escritor Alan Pauls. O tango nunca morreu, mas ganhou um novo fôlego com o lançamento, em 2005, de Café de los Maestros, disco duplo em que os produtores Gustavo Santaolalla e Gustavo Mozzi levaram de volta ao estúdio de gravação artistas dos anos 30, 40 e 50. Do disco passou-se a um livro e agora também a um documentário, que foi visto por mais de 50 000 pessoas em Buenos Aires e deve estrear no Brasil ainda neste ano. Os planos incluem ainda uma turnê. "É a prova de que o tango é a música clássica da Argentina", diz Arias, que, a despeito das carraspanas do professor, se tornou músico e arranjador de orquestras – de tango, claro.
As origens do tango são nebulosas. Ele teria surgido no fim do século XIX da mistura de gêneros como candombe, habanera e milonga. O nome "tango" seria uma corruptela de "tambo", ou "batuque". O tom melancólico (não existe tango alegre) teria sido uma colaboração dos imigrantes italianos, saudosos de sua terra natal. De início, o novo estilo não escapava dos cabarés, onde era dançado por homens. A partir dos anos 20, porém, quando Carlos Gardel popularizou o tango-canção, ele sofreu seguidas revoluções. Na década de 40, os intérpretes passaram a cantar acompanhados por uma orquestra (e muitas delas dispensaram a figura do cantor); nos anos 60, Astor Piazzolla o levou para as salas de concerto. O gênero passou por um período de baixa na década de 70, quando foi associado ao regime militar (Piazzolla teve o desplante de jantar com o general Jorge Videla) e tachado de machista. "As letras de fato retratavam a mulher como uma figura fútil", diz o co-produtor Mozzi. "Anos depois, no entanto, percebi a riqueza dos arranjos daquelas canções." No início desta década, o gênero ganhou até uma vertente eletrônica. Mas é nas orquestras típicas, formadas por jovens cabeludos que empunham bandoneons e violinos, que o tango dá suas mostras mais nítidas de vigor. "Existe uma nova geração de meninos talentosos, que cria seu próprio material em vez de imitar os antigos artistas. São o futuro do tango", diz o bandoneonista Leopoldo Federico.
NA TRADIÇÃO DE PIAZZOLLA |
Café de los Maestros, a despeito das aparências, não é um projeto de inspiração saudosista. Melhor dizer que ele é museológico. Apresenta quatro "escolas" do tango pré-Piazzolla (as iniciadas por Aníbal Troilo, Carlos Di Sarli, Juan D’Arienzo e Osvaldo Pugliese), em alguns casos com interpretação dos artistas originais. O trabalho incluiu a recuperação das partituras. Como muitas se haviam perdido, coube aos maestros escutar os discos e tirar nota por nota. O projeto também não deve ser confundido com Buena Vista Social Club, trabalho em que o guitarrista americano Ry Cooder recuperou a arte de músicos e cantores cubanos que havia muito tinham trocado a vida artística por subempregos. Os maestros tinham uma agenda agitada antes de aceitar o convite de Santaolalla e Mozzi. O bandoneonista Federico, de 81 anos, tem seu próprio grupo e é presidente da Associação Argentina de Intérpretes. "Comecei aos 8 anos e toquei com todos os mestres. Sou da época áurea do gênero, quando a Rua Corrientes era repleta de confeitarias. E todas elas tinham orquestras de tango em sua programação."
Os cantores Virginia Luque e Juan Carlos Godoy também se mantêm na ativa. Virginia, de 81 anos, fez sucesso como atriz de cinema na década de 40. É uma cantora talentosa e uma das raras intérpretes do sexo feminino (afinal, a maioria das letras de tango fala de mulheres ingratas e interesseiras). "Certa vez, me vesti de compadrito e cantei um desses tangos apenas para mostrar que também compreendia o sofrimento dos homens", diz. Hoje, Virginia é uma das atrações do El Viejo Almacén, no bairro de San Telmo. Ali, em meio a fotos da mãe, da filha e figuras de santos, ela teoriza sobre a importância do tango. "É uma música especial porque traz o melhor de cada povo: o batuque negro, o bandoneon dos alemães, o canto da França...", enumera, fazendo menção à suposta nacionalidade francesa de Carlos Gardel (que muitos historiadores afirmam ter sido uruguaio). Virginia também é um dos poucos motivos para enfrentar o Viejo Almacén, casa de espetáculos para turistas. Ela canta duas músicas, nas quais derrama dramaticidade. Na primeira, encarna uma mulher desprezada. Depois, interpreta La Canción de Buenos Aires, sucesso de Azucena Maizani, sua madrinha artística.
A DAMA DO VIEJO ALMACÉN |
Juan Carlos Godoy é responsável por um dos momentos mais divertidos do documentário Café de los Maestros. Depois de ser filmado no hipódromo de Buenos Aires, ele confessa que gastou toda a sua fortuna nos cavalos. "Dinheiro vai, dinheiro vem", diz. "Tenho 86 anos bem vividos e não me arrependo de nada." Godoy é outro que começou na infância, cantando tangos em bares portenhos por alguns vinténs. Na adolescência, chegou a trabalhar na prefeitura de Buenos Aires, mas largou o emprego porque o salário ia mesmo parar inteiro no jogo. Godoy cantou nas principais orquestras do país e fez sucesso na Colômbia, onde, jura ele, vendeu 3 milhões de discos. Também excursionou pelos Estados Unidos. "Fui catorze vezes a Nova York. É uma cidade linda, mas nada se compara àquele hipódromo", diz. Godoy, atualmente, não apenas canta nos bares de Buenos Aires como faz recitais especiais – sem brincadeira – para cavalos. "Um tango bem cantado por mim é vitória na certa."
O caçula de Café de los Maestros é o violinista Fernando Suárez Paz, de 68 anos, que teve seu período mais produtivo quando integrou o grupo de Astor Piazzolla, de 1978 a 1988. "Ele era um gênio, mas tinha temperamento difícil e era odiado pelos concorrentes, que tinham ciúme de seu talento", diz. Suárez Paz mantém um quinteto com o qual cumpre aquela que considera sua missão – "levar adiante a obra de Piaz-zolla" –, mas acha tempo para excursionar com o violoncelista sino-americano Yo-Yo Ma. "Sou o professor de tango dele", orgulha-se.
O PROFANO E O JOGADOR |
O momento mais emocionante do documentário Café de Los Maestros se dá quando os músicos se apresentam no Teatro Colón, em Buenos Aires, numa das raras vezes em que esse santuário da música erudita abriu espaço para um gênero popular. "Para mim, foi a consagração do tango", diz Federico. Pelo êxito da récita, é provável que outras salas clássicas sigam o exemplo. "Meu filho, neste período tão difícil em que estamos vivendo, é natural que as pessoas queiram cada vez mais ouvir tango", encerra Virginia. Não é só Gardel que canta cada vez mejor.