O chanceler Celso Amorim "não queria dizer nada (sobre o assunto), para que não soasse a ameaça". Mas, em Nova Délhi, onde acompanhava o presidente Luiz Inácio Lula da Silva, acabou dizendo o óbvio: se o governo do Equador não pagar o empréstimo tomado ao BNDES para construir a Hidrelétrica de San Francisco, "vai acabar o comércio" entre os dois países. E acrescentou que não entende como será possível dar um calote em empréstimo feito nos termos do Convênio de Pagamentos e Créditos Recíprocos (CCR), que obriga os bancos centrais a liquidar automaticamente o saldo da conta corrente dos dois países a cada quatro meses.
Mas o problema não está nos mecanismos de compensação das contas comerciais do Brasil e do Equador e muito menos nos defeitos - sejam eles de projeto, como alega a Odebrecht, sejam de construção, como afirma o governo equatoriano - que obrigaram a interrupção da geração de eletricidade pela usina. O problema está na evidente má-fé com que o presidente Rafael Correa está tratando um contencioso que, em circunstâncias normais, seria resolvido sem maiores traumas pela empresa contratada, a Odebrecht, e a contratante, a estatal equatoriana Hidropastaza. Afinal, a Odebrecht comprometeu-se a pagar os prejuízos e, se há dúvidas quanto a montantes, isso seria resolvido facilmente por arbitragem, como prevê o contrato.
Rafael Correa usou os defeitos na usina como pretexto para mobilizar os setores mais nacionalistas do eleitorado do Equador às vésperas do referendo que aprovou a sua Constituição bolivariana. E aproveitou para exibir-se a seus companheiros Hugo Chávez e Evo Morales como o herói bolivariano que enfrenta o gigante imperialista brasileiro. Acabou de compor o quadro com a ameaça de expulsar a Petrobrás, se não trocasse, imediatamente, o contrato de concessão de exploração de petróleo por outro, de simples prestação de serviços.
A má-fé de Correa é evidente. A usina parou de funcionar no dia 6 de junho. Só no dia 9 de outubro ele baixou o "decreto de emergência nacional" que expulsou a Odebrecht do país, interveio nas cinco obras que tocava e suspendeu os direitos constitucionais de quatro diretores da empresa - um dos quais teve de se asilar, até o início dessa semana, na residência do embaixador brasileiro. O decreto, aliás, não tinha base legal, uma vez que a Constituição equatoriana somente permite a decretação de emergência nos casos de iminente agressão externa, guerra internacional, grave comoção interna e catástrofe natural - e nada disso se aplica ao contencioso entre duas empresas.
Mas o que importa é que, no dia 4, cinco dias antes da edição do decreto, os técnicos da Hidrelétrica de San Francisco haviam iniciado os procedimentos para a religação da usina que, desde quarta-feira, dia 15, está funcionando normalmente.
Em outras palavras, Rafael Correa aproveitou-se de um problema técnico que já sabia estar resolvido - ao que tudo indica, a contento - para criar uma crise com o Brasil, em busca de dividendos eleitorais e de prestígio regional. Já usara tática parecida, para mobilizar a seu favor a opinião pública equatoriana. No início de 2007, ameaçou não pagar a dívida externa, gerando grande inquietação entre os credores - que, no entanto, têm recebido pontualmente as suas prestações.
Desta vez, a ameaça é não pagar o empréstimo contraído no BNDES, reforçada pela decisão de expulsar do país a estatal brasileira Furnas, que integrou um consórcio para a fiscalização das obras de San Francisco. Como Furnas não tem nem funcionários nem instalações no Equador, a pressão é contra o governo brasileiro.
Ao insulto, Correa acrescenta a injúria, pois quem cuida do contencioso com o BNDES não é o Banco Central ou a chancelaria equatoriana, mas a Secretaria Nacional Anticorrupção. Esse órgão fez suas contas e chegou à conclusão de que o contrato de empréstimo, de US$ 286 milhões, recebeu dez adendos e chega hoje a um total de US$ 597 milhões. Para completar a fabulação, as autoridades equatorianas afirmam que, como o dinheiro foi levantado para pagar a Odebrecht, não há por que o governo honrar o empréstimo - a construtora que o faça. Deve ser a versão local do "conto-do-paco": a construtora, em vez de receber, paga - e o Equador fica com uma usina de graça, livre da "pendura" no BNDES.
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