O Estado de S.Paulo - 02/06
A corrida desesperada de milhares de pessoas às agências da Caixa Econômica Federal para sacar dinheiro do Bolsa Família escancara uma realidade que parecia, pelo menos, atenuada com a ascensão de 30 milhões de pobres para a classe média: o grau de dependência financeira desse programa social para a população pobre é certamente maior do que têm avaliado estudiosos dos dilemas sociais do Brasil. Os números frios das pesquisas que realmente comprovam a redução da pobreza, desde o Plano Real, contrastam com cenas dramáticas, em 13 dos Estados mais pobres do País, de pessoas se atropelando, aos empurrões, para chegar a um caixa eletrônico, com pavor de perder R$ 70 da mesada do Bolsa Família.
A Polícia Federal apura a origem dos boatos que propagaram o cancelamento do programa pelo governo. Porém a cada dia fica mais claro que os boatos se espalharam, como um rastro de pólvora, a partir da atabalhoada decisão da Caixa Econômica Federal de antecipar a liberação dos pagamentos do programa sem esclarecer os motivos às famílias cadastradas.
Depois de 13 anos de sua criação, o Bolsa Família ampliou em valor e número de beneficiados, mas sofre de uma fatigada paralisação na sua concepção. É verdade que foi bem-sucedido como motor de distribuição de renda e ao exigir dos pais a contrapartida de manter seus filhos na escola e respeitar o calendário da carteira de vacinação. Mas parou por aí. Desde o início do governo Lula, especialistas reconhecem as limitações do programa e discutem o que chamam de "porta de saída". Ou seja, os governos (federal, estadual e municipal) oferecerem caminhos para os beneficiários buscarem e conseguirem seu próprio sustento financeiro.
Desde o ano 2000, quando o governo Fernando Henrique Cardoso o criou com o nome de Bolsa Escola, as primeiras crianças beneficiadas têm hoje entre 20 e 27 anos, com idade de inserção no mercado de trabalho. Mas o que foi feito delas? O que fazem hoje? Têm emprego garantido? Continuam cuidando da roça? Migraram para a cidade? Não se sabe, porque o governo não cuidou de fazer o básico de qualquer programa social: pesquisar seus resultados, mensurar sua eficácia, identificar falhas e acertos e avaliar se precisa ou não mudá-lo.
Com mais de 13 milhões de famílias cadastradas, o Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome tem as ferramentas e a estrutura para aplicar tal pesquisa, que seria de enorme utilidade para orientar e definir políticas públicas dirigidas a encontrar a "porta de saída" do programa. Ou até mesmo concluir que são dispensáveis porque a saída natural, o próximo passo, está em oferecer ao jovem um lugar no mercado de trabalho. Nesse caso a avaliação do programa seria útil para focalizar caminhos, estimular iniciativas localizadas de geração de empregos.
Grameen Bank. O economista e Prêmio Nobel da Paz Muhammad Yunus, criador e ex-presidente do Grameen Bank, formulou proposta interessante ao governo brasileiro que poderia funcionar como indutor de saída para o Bolsa Família. A exitosa experiência de quase 40 anos operando com microcrédito para pobres de Bangladesh credencia Yunus e suas ideias para aplicação em outros países.
"Por que não criar um programa de televisão que mostre cinco ou dez pessoas que recebem dinheiro do Bolsa Família tentando criar negócios sociais para deixar de receber verba do governo? Mesmo que nem todos consigam, certamente empreendedores irão ver isso na televisão e poderão se interessar em investir nessas ideias", propôs Yunus em São Paulo, onde fez palestra na sede da Escola Superior de Propaganda e Marketing (ESPM).
Como na pobre Bangladesh de 130 milhões de habitantes não havia programa social equivalente ao Bolsa Família, Muhammad Yunus resolveu aliviar a pobreza ali por meio do microcrédito, emprestando reduzidíssimas quantias para famílias muito pobres de produtores rurais. No início, em 1976, usou seus próprios recursos, cobrando juros e parcelando o crédito, de forma a não reduzir seu capital, ao mesmo tempo que enquadrava o empréstimo na capacidade de pagamento do tomador. Foi esse sistema de microcrédito que originou o Grameen Bank, a primeira experiência no mundo de um banco com foco na população de baixíssima renda, o que valeu a Muhammad Yunus o Prêmio Nobel da Paz de 2006.
Ele deixou a presidência do banco em 2011, mas o Grameen Bank continua operando com o governo de Bangladesh, seu principal acionista. Como no Bolsa Família, 97% dos 6,6 milhões de beneficiários são mulheres, não há exigências de garantias nos créditos e o índice de inadimplência é de 1,2%, bem mais baixo do que o de grandes bancos internacionais.
Em 2011 Muhammad Yunus deixou o banco e partiu para outra experiência: criou o Yunus Social Business, organização internacional voltada para fomentar o conceito e a prática do "negócio social" e presente no Japão, Coreia, Itália, Alemanha, Estados Unidos, França e Turquia. Seu maior "negócio social" foi criar uma empresa em Bangladesh em parceria com a multinacional fabricante de iogurte Danone, que tem todo o retorno do capital investido, mas não se apropria do lucro, usado para reduzir o preço dos iogurtes enriquecidos vendidos de casa em casa para a população de baixa renda.
Yunus esteve no Brasil em 2008, conversou e tirou fotos com o ex-presidente Lula. Mas, aparentemente, suas ideias não sensibilizaram o interlocutor. Quem sabe a presidente Dilma Rousseff pensa diferente? E reconhece que os milhões de reais que seu governo gasta hoje com propaganda e autopromoção em TV gerariam resultados sociais importantes se aplicados em inserções na televisão - como sugeridas pelo bengalês - voltadas para incitar o instinto criativo e empreendedor do brasileiro comum.
O microcrédito ampliado e com capilaridade para alcançar regiões pobres constituiria o braço financeiro a apoiar iniciativas desses pequenos empreendedores. Sem paternalismos de vida curta, com empréstimos a juros baixos (como os do BNDES) e parcelamento da dívida, como fez Yunus em Bangladesh, seria um bom caminho para abrir uma porta de saída e dar continuidade ao Bolsa Família.
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