Nossa Constituição, não sem razão, é frequentemente acusada de prolixa, sem a concisão que caracteriza as Cartas Magnas das democracias mais desenvolvidas, cujo modelo mais citado é a norte-americana. São numerosos os temas, normatizados em pormenores na nossa Constituição, que caberiam perfeitamente na legislação ordinária. Há tópicos, porém, em que a Lei Maior é sucinta demais, a revelar, em lugar de boa técnica jurídica de concisão, um certo alheamento do constituinte de 1988 em relação à questão tratada. E este é o caso, seguramente, da complicada questão das terras dos quilombolas ? remanescentes de comunidades de ex-escravos no território nacional ? tratada nos Atos das Disposições Constitucionais Transitórias com generalização no mínimo ambígua, quando não superficial e confusa.
Este é o texto: "Aos remanescentes das comunidades dos quilombos que estejam ocupando suas terras, é reconhecida a propriedade definitiva, devendo o Estado emitir-lhes os títulos respectivos." Só isso. Como caracterizar tais "remanescentes"? Como comprovar tais "ocupações", desde que época e em que extensões? Estas e tantas outras indagações que poderiam surgir, sobre o tema, não encontram resposta na regra constitucional transitória. É claro que tal indefinição só poderia gerar, como tem gerado, um frenesi reivindicatório que, no campo fundiário, sempre esbarra com interesses de outros ? independentemente de sua legitimidade ou não ? e produz conflitos sociais.
O dispositivo constitucional foi regulamentado, depois de 15 anos, pelo Decreto 4.887, do presidente Lula, que recompôs praticamente na íntegra projeto de lei vetado pelo presidente Fernando Henrique. Com base no decreto, as primeiras comunidades quilombolas, no total de 114, se formalizaram em 2004. Veja-se como a questão evoluiu de lá para cá: hoje existem, oficialmente, 1.289 comunidades aptas a cobrar a posse legal das terras onde vivem; 2.235 é o número das comunidades que estão oficialmente mapeadas e aguardam reconhecimento. Assim, a Fundação Palmares, ligada ao Ministério da Cultura, aponta a existência de 3.524 comunidades quilombolas no Brasil ? o que ainda não satisfaz a algumas ONGs, para as quais esse número chegaria a 5.000!
Se todas essas reivindicações forem atendidas, o governo teria que encontrar para elas uma área de cerca de 240 mil quilômetros quadrados ? segundo cálculos dos técnicos do Incra. Quer dizer, uma área equivalente à do Estado de São Paulo.
É verdade que, por pressão dos ruralistas, o governo modificou o critério de abertura de processo reivindicatório de terras, por parte das comunidades afrodescendentes. Antes bastava que as comunidades quilombolas assim se autodefinissem. Agora se tornou necessário o laudo pericial de antropólogos, que ateste a real permanência e a qualificação dos que se dizem remanescentes dessas comunidades. Não será um meio eficaz de se regulamentar o processo reivindicatório, mas já é alguma coisa.
Mas a mudança legal não resolveu conflitos de interpretação nessa complicada questão. De acordo com os ruralistas, o Incra está considerando que as comunidades que já tiveram seu processo de reconhecimento iniciado não precisam submeter-se às novas exigências legais, como a do mencionado laudo antropológico. Há também o problema dos limites da área considerada pertencente à comunidade quilombola. Hoje a comunidade pode reivindicar não apenas a área que ocupa, mas todo o espaço que considera necessário para sua sobrevivência ? o que é um conceito arbitrário, na verdade uma porta escancarada para o abuso.
Em São Paulo o governo já repassou 57 mil hectares para 23 comunidades quilombolas ? desde que o então governador Mário Covas criou um grupo de trabalho para estudar as reivindicações de comunidades do interior do Estado que se apresentavam como herdeiras de tradições dos escravos. Mas outras 28 comunidades também pretendem obter esse reconhecimento.
Como se vê, não se vislumbra, nem a médio prazo, a solução definitiva e pacífica da questão quilombola.
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