O Estado de S.Paulo - 11/12/11
Como temos visto, parece estar na moda o Estado se meter cada vez mais na vida privada dos cidadãos. Na convicção de que existem, universalmente, comportamentos "certos" ou "corretos", tecnocratas fazem tudo para impingir-nos essa correção. É comum que sejam alegadas bases "científicas" para definições do normal e do desejável, com frequência misturando-se asininamente a neutralidade da ciência com valores que não têm, nem pretendem ter, fundamento científico, mas cultural, filosófico ou religioso. Acaba-se gerando - e suspeito que isso se vem intensificando - a expectativa de que todos assumam diante da vida a mesma atitude "normal" ou "sadia" e ajam sempre de acordo com ela. Se alguém não se encaixa nessa fôrma, não só padecerá de culpa e estresse, convencido de que, de alguma maneira, é um réprobo anormal ou doente, como, em atos cada vez mais numerosos, o Estado força o cidadão a proteger-se do que é oficialmente considerado danoso ou inapropriado, cerceando-lhe, "no seu próprio interesse", a liberdade. O Estado sabe o que é bom para nós e não temos o direito de contestá-lo.
Um exemplo dessa mentalidade e das práticas que engendra é a leitura. Parece agora implantada a convicção de que existe uma leitura correta para cada livro. Poemas e romances, devem ser "contextualizados" e depois interpretados segundo a ótica recomendável. Remove-se assim toda a aventura de ler um poema ou romance, a atitude diante deles é a de um patologista diante de um cadáver. Não duvido nada de que, acostumado a essa leitura tutelada, o sujeito saia da escola, torne-se adulto e fique incapaz de ler, a não ser que alguém "contextualize" o texto para ele. Não é preciso contextualizar Dom Quixote, Hamlet ou qualquer outro personagem clássico, assim como não é necessário contextualizar Tarzan ou Sherlock Holmes. Deve-se mergulhar nos clássicos sem intermediários, as descobertas e sustos são pessoais e íntimos. A tutela só é legítima se fruto da decisão do leitor. Se ele pede, que se faça a tutela. Mas, se ele não pede, que sua liberdade, seus horizontes e sua sensibilidade se expandam sozinhos através de leitura, em experiências individuais que não se pode, em rigor, repartir com ninguém.
E a tutela não para por aí, como sabemos. As próprias histórias são alvo dos tutores, que já reescreveram as letras de canções folclóricas infantis, como Atirei o Pau no Gato e O Cravo e a Rosa. Não se atira mais o pau no gato, nem o cravo sai ferido ou a rosa despedaçada. Tudo isso é nocivo, corrompe e perverte e teremos uma sociedade bem menos violenta, quando as gerações assim educadas chegarem ao poder. Imagino que alguém já possa ter tido a ideia, ora sob análise no Ministério da Educação, de ensinar somente as "partes boas" da História, deixando de lado crueldades, desumanidades, atrocidades e tudo mais que possa dar mau exemplo à juventude. Os assírios, por exemplo, não esfolavam ninguém vivo, faziam peeling. Assim como o Santo Ofício não torturava ninguém, aqueles aparelhos todos eram de ginástica.
Estive pensando nessas coisas com algum vagar e a conclusão é que muitas novidades nos esperam. Não creio, por exemplo, que a história de Chapeuzinho Vermelho venha a ser conhecida no futuro. Talvez agora mesmo uma comissão lá no ministério esteja examinando o assunto, para depois baixar normas estritas, que redundarão na proibição dela e de semelhantes. Um mero exame superficial e preliminar é suficiente para demonstrar como é nociva a história de Chapeuzinho e como somos irresponsáveis ao transmiti-la a nossas crianças.
Em primeiro lugar, tão à vista que passa despercebida a quase todos, vem a cor do chapéu. Por que vermelho? Durante a Guerra Fria, era uma óbvia tentativa de instilar subliminarmente, no inconsciente da juventude, o apego a um dos símbolos do comunismo, a cor vermelha de sua praça, sua bandeira e seu Exército. Passada essa era, o vermelho é atualmente a cor do PT. Não fica bem para o partido uma menina como Chapeuzinho, hoje desmascarada como uma pequeno-burguesinha preconceituosa e reacionária, usar um chapéu com a cor dele. Nesse caso, que outra cor, amarelo? Não, também fica chato. Além de ser uma das cores do Brasil, o amarelo pode ofender as minorias de raça amarela. O mesmo se diz do preto, acrescida a circunstância de que, neste caso, os mais radicais poderiam exigir que fosse Chapeuzinho Afro-brasileiro. E por aí marcha uma discussão infindável, terminando-se afinal por abolir a cor e deixar somente Chapeuzinho.
Também grave, embora da mesma forma poucos reparem, é o presente que Chapeuzinho leva para a vovó. Doces? A esta altura da evolução da medicina, levar doces para uma senhora já velhinha? Doces nessa idade deveriam ser evitados. Eles engordam e a maior parte dos ingredientes das gulodices é nociva para os idosos. Para não falar que o consumo de açúcar pode deflagrar um caso de diabete. Não, não, não se pode permitir que o exemplo de Chapeuzinho transforme gerações de jovens em envenenadores de vozozinhas.
O caçador é outro exemplo gritante de incorreção. A caça e o porte de armas no Brasil são proibidos e, portanto, esse pseudo-herói um criminoso. Numa clamorosa falta de consciência ecológica, esse fora da lei mata um lobo. O lobo é uma espécie ameaçada em toda parte e tem seu lugar na Natureza. E, para piorar, é também caluniado, porque o caçador abre a barriga dele e encontra a vovozinha viva, quando se sabe que não há lobo capaz de engolir uma pessoa inteira. Enfim, a história de Chapeuzinho tem tudo para ser banida de escolas e bibliotecas. Quando chegará o dia em que precisaremos de autorização oficial para dar um livro de presente a um filho?