Sintonizo a Metrópole-FM, Salvador, para ouvir o programa de entrevistas "Na Linha". Maldigo o contratempo de ter chegado quase no final, pois este é um de meus favoritos do rádio, na Bahia: pela informalidade, conteúdo jornalístico diversificado e, principalmente, pela fauna humana e a prodigalidade de experiências, sentimentos e estilos que transitam livremente por lá. Nesse dia, o apresentador Mario Kertész conversava com o jornalista americano Larry Rohter, autor de "Deu no New York Times", que já está na lista dos livros mais vendidos no País.
Chego a tempo de ouvir o entrevistado dizer que não fez o livro com a intenção de dar versão pessoal sobre a ruidosa briga com o presidente Lula, em 2004.O objetivo, garante o ex-correpondente, é contar e pensar sobre os muitos brasis que conheceu desde 1972, quando desembarcou pela primeira vez no Rio de Janeiro e ficou deslumbrado. Na fase de correspondente, entre 1999 e 2007, reportagens sobre a Amazônia, o Nordeste, e a Bahia principalmente, ganham relevo especial. "Valem, por si, uma leitura", recomenda o polêmico repórter de Chicago ao ouvinte que se dispuser a conferir.
O pedaço da entrevista que ouvi foi reduzido, mas suficiente para desestabilizar o pé atrás em relação a Rother , desde o "bafafá da cachaça" com o presidente. Sei que ele suscita avaliações extremas. De elogios rasgados nas páginas da mais importante revista semanal brasileira, até textos irados de articulistas que o desqualificam com acusações tão duras quanto improváveis, como a que inclui o profissional do jornal mais influente do mundo na relação de ex-agentes da CIA, "mandado em missão de espionagem à Amazônia".
De um lado, a louvação meio míope e politicamente imediatista. Do outro, as maledicências nascidas da miopia ideológica que cega e envenena avaliações sobre os fatos e as pessoas. Conjeturo, enquanto, na TV, o escritor João Ubaldo Ribeiro dá entrevista na Globo News, sobre o novo livro que o ex-editor da Tribuna da Bahia está lançando. Coincidentemente, ele ilustra tudo com uma história exemplar do encontro "com um desses amigos sacanas, que todo mundo tem". Gente que dá estocada, mesmo quando parece querer agradar.
"Você viu a esculhambada que o New York Times deu em você?", pergunta o "amigo", referindo-se a uma matéria sobre Ubaldo no jornal americano. O autor de "Viva o povo brasileiro" não se abala, nem perde o humor sempre afiado: "Vi, sim, e achei ótimo", responde. "Agora me diga: quantas vezes o New York Times já falou sobre você"? , pergunta o baiano de Itaparica, enquanto se afasta sem nem conferir a cara de espanto do chato.
Depois de ouvir Ubaldo parto para ler o livro de Rother. De saída, pulo o capítulo "Lula e eu", a parte em que o autor fala do bafafá decorrente, segundo confessa, "da reportagem mais polêmica que eu escrevi em todos os meus anos como correspondente no Brasil". Rother se refere, já se vê, à ardida matéria, publicada em março de 2004, com título opinativo e provocador: "Gosto do dirigente brasileiro pela bebida causa preocupação nacional".
Sempre desconfiei que talvez esteja no título, mais que no texto da reportagem, a razão maior do ruído desencadeado na política e no jornalismo. Quase deságua em incidente internacional grave, diante da ameaça do governo de expulsar o correspondente do NYT (casado com uma brasileira). Tensão ampliada pelo espectro da censura de opinião que voltava a rondar preocupantemente sobre a imprensa brasileira, depois do regime militar.
Mas, superadas as suspeitas iniciais, não é difícil verificar: além do repisado episódio etílico, ao qual o livro não acrescenta praticamente nada de novo, sobra em "Deu no New York Time" bastante para ler e descobrir sobre os anos de Rother no País. Um destaque é o olhar especial do correpondente americano em relação a fatos e coisas do Nordeste em geral, e da Bahia em particular.
Uma visão romântica e complacente em alguns casos, mas atenta e atraente. Isto se vê nos relatos sobre o artista e ex-ministro da Cultura, Gilberto Gil; na avaliação da densidade musical e da transcendente importância intelectual de Caetano Veloso; na percepção da influência da literatura de Jorge Amado e da música de Dorival Caymmi sobre Salvador e sua gente.
Surpreende a visão de Rohter quando identifica na Bahia a ofensiva dos credos evangélicos sobre os cultos afro-brasileiros, a ponto de ter registrado no NYT o momento em que os espaços das "baianas" do acarajé, ligadas tradicionalmente ao candomblé, começam a ser invadidos e ocupados. Gente sisuda, com a Bíblia na mão, vende comida de origem africana nas ruas de Salvador.
Tem mais para ler com interesse em "Deu no New York Times". Mas sobram motivos também para passar batido por páginas com registros de fatos e assuntos que, mesmo contextualizados pelo autor, envelheceram com a ação implacável do tempo, que, no jornalistico, é sempre mais curto. Viva e atual, como quando sairam no NYT, mantem-se no livro as abordagens sobre a cultura popular nordestina, que pulsa em Olinda e Recife: na música, na arte, nas feira,no cordel e nos bonecos do carnaval de rua de Pernambuco. No correr das páginas, uma sensação: o ex-correspondente estrangeiro é bem melhor repórter que analista.
Opinião a conferir, evidentemente.
Vitor Hugo Soares é jornalista. E-mail:[email protected]