Pesquisa sobre a diversidade genética chega à conclusão
de que o homem moderno surgiu há 200 000 anos onde
hoje é a fronteira entre Angola e Namíbia
Leandro Beguoci
Mark Read/Corbis/Latin Stock |
A grande viagem |
O nascimento da humanidade em jardins verdejantes com árvores frutíferas faz parte da mitologia de muitas religiões. Também inspirou grandes pintores, como o renascentista Hieronymus Bosch, autor de Jardim do Éden. A maior pesquisa já feita sobre a diversidade genética da África, berço da espécie humana há 200.000 anos, muda esse cenário para um amontoado de areia, pedras e arbustos. O estudo, realizado pela Universidade da Pensilvânia, concluiu que o homem moderno surgiu numa região que hoje se situa na fronteira entre Angola e Namíbia, no sudoeste do continente africano. Nessa área vivem os 100.000 integrantes do povo san, ainda hoje formado por caçadores e coletores. Nenhum povo africano tem uma variedade genética tão grande quanto os sans, e foi justamente isso que levou os pesquisadores a concluir que seus antepassados deram origem à humanidade. Sabe-se que, quanto mais distantes da África, menor a diferenciação de genes das populações que hoje habitam os quatro cantos do mundo. A explicação é simples. A população original teve mais tempo para acumular variações em seu genoma. Chama-se a isso "efeito fundador". As populações mais distantes da África são descendentes de grupos migratórios pequenos e relativamente recentes, o que se traduz num conjunto genético mais homogêneo.
A pesquisa conclui que os antepassados dos sans se espalharam pela África. Também calcula o ponto exato em que um grupo deles – talvez um bando tribal com não mais que 150 integrantes – teria deixado a África, há 50.000 anos, cruzando o Mar Vermelho em direção à Ásia – e daí ganhando o mundo. A descoberta reforça a tese, consolidada nas últimas décadas pelas pesquisas genéticas, de que a humanidade descende de um pequeno grupo de "Evas" e "Adãos". A conclusão de que os sans se espalharam pela África e se tornaram nossos antepassados é reforçada pelo fato de certas características da língua falada por eles estarem presentes em diversas outras do leste da África, próximo de onde o homem moderno deixou o continente. Uma pesquisa de 2003 concluiu que o idioma dos sans pode guardar a chave para explicar a origem da própria linguagem humana. Os pesquisadores da Pensilvânia, encabeçados pela antropóloga e geneticista Sarah Tishkoff, trabalharam por mais de dez anos coletando material genético de 3 194 integrantes de 113 populações da África. Entre muitos obstáculos geográficos para chegar a alguns desses grupos, tiveram de engendrar planos para coletar sangue sem ofender costumes tribais.
Por fim, os pesquisadores desco-briram que todos os africanos são descendentes de catorze populações. Para obterem esse resultado, eles compararam os padrões genéticos com a etnia, a cultura e a língua dos povos pesquisados. Descobriram fortes relações entre os traços genéticos e a cultura de cada povo, com poucas exceções. Entre elas, os luos, grupo étnico do Quênia ao qual pertence o pai do presidente americano Barack Obama. Durante muito tempo, os luos foram classificados como de origem sudanesa. Na verdade, são descendentes do ramo banto, que inclui 500 idiomas africanos.
O estudo foi festejado como uma peça-chave para a compreensão da origem da humanidade, das migrações que povoaram o planeta e das adaptações do homem ao meio. Ele se soma a pesquisas semelhantes feitas sobre os primeiros europeus. Também abre caminho para aplacar as chagas do continente africano, encontrando novos tratamentos para a aids, a malária e a tuberculose. Pessoas oriundas de grupos diferentes respondem de maneira diversa aos medicamentos. "Os africanos têm sido negligenciados nas pesquisas de mapeamento genético porque o acesso aos grupos com maior diversidade genética é difícil", diz a pesquisadora Sarah Tishkoff. Ela também avalia que os resultados de seu estudo serão importantes para mapear doenças genéticas características de negros americanos. Com a pesquisa da Universidade da Pensilvânia, o jardim do éden pode ter ficado menos colorido, mas a descoberta de seu ponto exato no globo é mais um avanço no conhecimento da aventura humana.
O rosto do primeiro europeu
Fotos BBC/divulgação e Jean-Claude Bragard/BBC |
Herança africana |
Há dez anos, o médico e artista plástico Richard Neave, da Universidade de Manchester, especializado em reconstituição facial, mostrou ao mundo o rosto de Luzia, o fóssil mais antigo de um brasileiro, com 11 500 anos. Agora, Neave revela a face do primeiro europeu, baseado em partes do crânio e da mandíbula de um Homo sapiens de 35 000 anos encontradas em 2002, na Romênia. A semelhança entre as duas reconstituições ajuda a entender como uma população reduzida de homens deu origem à ampla diversidade de etnias que habitam o planeta. "O processo de diferenciação que produziu brancos, negros ou japoneses começou há 10 000 anos", explica Walter Neves, arqueólogo da Universidade de São Paulo. "Antes desse período, todo mundo possuía rosto semelhante ao dos atuais africanos", conclui ele, responsável pela descoberta que mudou o que se sabia sobre a pré-história da América. Até os fósseis de Luzia serem encontrados, a tese mais aceita afirmava que os antepassados dos índios foram os primeiros a chegar ao continente, há 12 000 anos. Hoje, os cientistas sabem que o mais provável é que um grupo aparentado dos aborígines australianos tenha saído do sul da China atual e atingido o continente americano há 15 000 anos.
O antropólogo americano Erik Trinkaus, da Universidade de Washington, foi um dos primeiros cientistas a analisar a ossada do primeiro europeu. Ele afirma que o crânio e a mandíbula são os fósseis que, com mais segurança, mostram como o homem era quando chegou à Europa, apesar de imprecisões impossíveis de sanar. "Os ossos não contam a cor da pele de uma pessoa nem a grossura dos seus lábios", disse Trinkaus a VEJA. Ele pondera que a semelhança entre Luzia e o primeiro europeu se deve também às técnicas de Nea-ve, que sabe como poucos especialistas em reconstituição como os tecidos da face se amoldam a determinados tipos de osso.