Marcelo Bortoloti
Antonio Caetano/MNBA e Museu de História Nacional |
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Nenhum museu está livre de um belo dia descobrir que tem em seu acervo uma obra falsa. Aconteceu no Louvre com dois quadros de Leonardo da Vinci, no Masp com um autorretrato que se supunha ser de Rembrandt. Mas muito dificilmente se põe em xeque, ao mesmo tempo, a autenticidade de boa parte do acervo de uma mesma instituição, como se fez em 2007 com a Chácara do Céu, no Rio de Janeiro. Ali está guardada a estupenda coleção de trabalhos do francês Jean-Baptiste Debret (1768-1848) reunida pelo empresário Raymundo de Castro Maya. Naquele ano, um catálogo com toda a obra do pintor identificou 42 quadros falsos em seu acervo, o que corresponde a 10% do total. O livro, organizado por Pedro Corrêa do Lago e Júlio Bandeira, mostrou também problemas no acervo do Museu Histórico Nacional e do Museu Imperial de Petrópolis, ambos federais. O Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) pôs-se em brios e montou uma comissão para conferir a consistência dessas conclusões. Um ano depois, o resultado preliminar da análise de 44 pinturas conclui: apenas duas podem ser de Debret. O resto é falso como uma nota de 3 reais, ou foi pintado por um contemporâneo do artista e equivocadamente atribuído a ele.
O Departamento de Museus do Iphan muniu-se da mesma metodologia de autenticação empregada em países como França, Espanha e Estados Unidos. Mas muitas falsificações já estavam na cara. No Retrato de D. João VI, óleo que pertence ao Museu Histórico Nacional e há décadas é atribuído erroneamente a Debret, a coroa real é reproduzida de forma tosca, o que seria impensável para um pintor que era retratista oficial da corte. Os cabelos de dom João também estão escuros, ao contrário do que se vê em todos os outros quadros feitos por Debret nessa mesma época, que o mostram já grisalho. Outro exemplo, a aquarela Embarque na Praia Grande das Tropas que Se Destinam ao Sítio de Montevidéu, da coleção Castro Maya, é uma falsificação declarada que traz um erro grosseiro. O episódio retratado aconteceu no dia 21 de maio de 1816, ocasião em que a corte estava de luto pela morte da rainha dona Maria I – e, por isso, no quadro original todos estão de preto. Na cópia, o falsificador não se ateve a esse detalhe, e pintou todo mundo de roupas coloridas.
A maior parte das obras falsas foi adquirida por Castro Maya no fim dos anos 1930. Ele comprou 551 desenhos e aquarelas da família de Debret, numa negociação intermediada pelo franco-brasileiro Roberto Heymann. A troca de correspondência mostra que a relação entre os dois azedou depois que Heymann vendeu uma cópia de aquarela já existente na coleção de Castro Maya para um descendente da família Orleans e Bragança. O empresário passou a desconfiar que algumas telas de sua coleção fossem falsas, mas nunca assumiu isso publicamente. Técnicos do museu também já haviam anotado em fichas de catalogação a suspeita de falsificação de algumas delas. Mas nenhuma atitude foi tomada, até o lançamento do catálogo.
O livro de Pedro Corrêa do Lago tirou conclusões com base em uma análise visual feita por experts. O novo estudo usou uma técnica difundida a partir dos anos 1980. Ela une três tipos de análise: uma visual, para identificar as técnicas da pintura, um exame grafológico da assinatura do autor e uma análise físico-química das partículas da tinta e do suporte. Foi através dela que a National Gallery, de Londres, descobriu que seis das 27 obras de Rembrandt da sua coleção não eram do pintor holandês, mas de seus pupilos. É a primeira vez que o método é utilizado no Brasil em larga escala, o que pode ajudar a estabelecer um novo padrão de autenticação de obras de arte no país. "Vamos publicar toda a metodologia e criar um curso para formar especialistas em autenticação", diz José do Nascimento Júnior, diretor do Instituto Brasileiro de Museus, autarquia que sucedeu ao Departamento de Museus do Iphan. A primeira medida será analisar todas as obras de Debret dos museus federais.
Até aqui, não foi muito difícil confirmar o que está no catálogo. Há na coleção Castro Maya exemplos como a aquarela Vista da Cidade, em que até mesmo a arquitetura retratada é de um período posterior ao da passagem do pintor pelo Rio de Janeiro. Nela aparece uma espécie de fábrica com chaminé, impossível no Brasil do princípio do século XIX. Outro caso é o do quadro que retrata o Cabo da Boa Esperança, na África, que tem a assinatura falsa de Debret. O autor, cuja técnica de perspectiva era deficiente, pintou os navios como se estivesse sobrevoando o local, e não ao nível do mar. As únicas duas dúvidas dizem respeito às aquarelas Baía do Rio de Janeiro e Negro Vendendo Galinhas e Peru. Em ambas, o parecer diz que não há nada no estilo dos quadros que indique não serem obras de Debret. Nesse caso, a análise química dos elementos dará o veredicto.
Horst Merkel/Museus Castro Maya |
O TROPEÇO DO FALSÁRIO Debret retratou esta cena com todos de luto pela morte de dona Maria I. No quadro acima, não há roupas pretas: erro grosseiro |