Os livros de ficção mais vendidos do Brasil flertam
com a auto-ajuda. Não contentes em contar uma
história, buscam consolar e aconselhar o leitor
– e oferecem até comunicação direta com Deus
Jerônimo Teixeira
Ilustração Negreiros |
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A lista de mais vendidos de VEJA traz, nesta semana, no topo da categoria ficção, duas obras que trafegam na fronteira da auto-ajuda. Não são Literatura, com maiúscula – não apresentam, por exemplo, a força estilística de um Ensaio sobre a Cegueira, de José Saramago, para ficar com outro título que vem freqüentando a lista. Mas esses livros tampouco se contentam em distrair o leitor nas horas vagas, como o típico best-seller. A Cabana (tradução de Alves Calado; Sextante; 240 páginas; 24,90 reais), do canadense William Young, conta a história de um homem que, deprimido e revoltado por causa do assassinato da filha pequena, tem a oportunidade ímpar de discutir seus ressentimentos com ninguém menos que Deus, em tríplice encarnação: Deus pai aparece como uma acolhedora dona-de-casa negra (parece uma mistura do misterioso Oráculo, da série Matrix, com a ama carinhosa de E o Vento Levou...), o Espírito Santo é uma diáfana mulher oriental e Jesus é um jovem carpinteiro que faz piada sobre o próprio narigão judaico. O Vendedor de Sonhos (Academia de Inteligência; 296 páginas; 29,90 reais), do brasileiro Augusto Cury – um campeão da auto-ajuda, com títulos como Nunca Desista de Seus Sonhos –, prega uma mensagem na aparência inconformista (e no fundo bem mansinha) por meio dos discursos pretensamente poéticos de um personagem identificado apenas como o Mestre. Formalmente, são dois romances. Mas a ficção aqui não está a serviço dela mesma. Ela é um instrumento, um meio de aconselhar, inspirar, consolar o leitor.
O Alquimista e O Diário de um Mago, livros que fizeram o sucesso de Paulo Coelho (que agora se arriscou em um policial, O Vencedor Está Só), também iam nessa direção. Mas há uma diferença marcante: com suas histórias de iniciação em disciplinas mágicas, os romances de Paulo Coelho eram místicos, esotéricos. A Cabana e O Vendedor de Sonhos encaixam-se em uma visão cristã mais tradicional – embora o livro de Young sugira que o relacionamento direto com Deus pode prescindir das igrejas. A temática religiosa não é tão dominante no romance de Cury, mas ele tem lá suas interpretações originais do Evangelho: entre uma e outra crítica ao materialismo da vida moderna (sempre ela), o tal Mestre chega a fazer uma reedição comentada do Sermão da Montanha do alto de uma escadaria de shopping. Esquemáticos e previsíveis, os personagens de A Cabana tendem a se perder em longas discussões sobre o amor de Deus por seus filhos. Nada que exija um leitor versado na teologia de Agostinho e Tomás de Aquino: é um livro acessível. O potencial que ele tem para oferecer consolo é inegável. "Recebo dezenas de e-mails, todo dia, de leitores dizendo que A Cabana os ajudou a lidar com a perda de um pai, de um irmão, de um filho", disse Young a VEJA.
Divulgação |
TRINDADE MULTICULTURAL William Young, autor de A Cabana: Deus é uma cozinheira negra, o Espírito Santo é uma mulher oriental e Jesus faz graça com seu próprio nariz judaico |
A religião tem inspirado numerosas obras-primas, desde monumentos literários como A Divina Comédia, de Dante, ou Paraíso Perdido, de John Milton. O século passado conheceu um time muito variado de escritores católicos – caso do dramaturgo Paul Claudel e do romancista François Mauriac, pertencentes à geração que despontou no entreguerras, na França, ou de Jorge de Lima e Murilo Mendes, nomes fundamentais da poesia moderna brasileira. A religiosidade desses autores não é bolinho – é muitas vezes atormentada, problemática. Young tem pouco a ver com essa gente. A Cabana guarda parentesco com a literatura ligeira de mais um freqüentador assíduo da lista de best-sellers, Mitch Albom, autor deAs Cinco Pessoas que Você Encontra no Céu – outro livro de colorido meio religioso, em que um homem descobre como sua vida foi plena de significado... depois de morrer. "Não saberia escrever um livro depressivo. Quero levantar as pessoas, alegrá-las", disse Albom a VEJA. O otimismo é a alma do negócio. Também em A Cabana o final é cheio de esperança. Depois de algum trololó divino, Mack, o pai que teve a filha de 6 anos morta por um assassino serial, se convence de que a Criação é perfeita e Deus é bom.
"Resolvi escrever um romance porque a arte e a ficção se comunicam mais diretamente com a alma das pessoas", afirma Young, de 53 anos. Tem razão. Dizer abstratamente que Deus é amor convence menos do que apresentá-lo assando uma torta para um pai desesperado. Young conta que escreveu A Cabana em um período de sua vida em que ele mesmo precisava de consolo – havia perdido um irmão e uma sobrinha de 5 anos. O livro também valeu para acertar certos conflitos da infância. Missionários evangélicos, os pais de Young o arrastaram, ainda menino, para Papua-Nova Guiné, um deslocamento traumático para ele – que sofreria abuso sexual na tribo em que seus pais pregavam. "Em muitos sentidos, Mack sou eu", afirma. Com sua apologia de uma relação direta com Deus, A Cabana vai na linha oposta à religião dos pais do autor. "Minha mãe até achou o livro meio herético", diz Young. A Cabana é o primeiro lugar da lista desta VEJA e na semana passada ocupava o topo da lista de ficção em brochura doNew York Times. Young já anda viajando o mundo para promover seu livro – estará no Brasil entre 27 e 30 de outubro. A heresia compensou.