Estadão
A presidente da Argentina, Cristina Kirchner, esperneou o quanto pôde, acusou o outro lado de extorsão, mas ontem avisou que vai respeitar a sentença da Justiça dos Estados Unidos que a obriga a pagar os credores. Vai negociar com os que ela mesma chamou de fundos abutres.
Não ficou claro o que será essa negociação nem o seu desfecho. De todo modo, prevaleceu o pragmatismo, depois de um longo tempo em que o governo argentino não soube lidar com a situação adversa.
Os tais fundos abutres têm nome e sobrenome. São liderados pelo NML Capital que, por sua vez, pertence ao Elliot Management, do magnata Paul Singer, e pela Aurelius Capital, de Marcos Brodsky. Esses fundos compraram por uma ninharia os títulos da dívida argentina no mercado depois que foi decretado o calote da dívida externa, em 2001. Não aceitaram os termos da reestruturação da dívida argentina (e por isso são chamados holdouts) e passaram a cobrar o pagamento integral na Justiça dos Estados Unidos. Na última segunda-feira, a Suprema Corte deu razão aos fundos e obrigou o governo da Argentina a pagar o que deve. A conta a pagar é de US$ 1,33 bilhão que tem prioridade sobre o devido aos demais credores.
Nos anos 90, o Brasil passou por situação semelhante, mas enfrentou a carga com mais sucesso. A família Dart, produtora de embalagens de polietileno e liderada por Kenneth Dart, também comprou na bacia das almas mais de US$ 1 bilhão em papéis da dívida brasileira e rejeitou os termos da renegociação supervisionada pelo Plano Brady, que levava o nome do então secretário do Tesouro dos Estados Unidos, Nicholas F. Brady. Em 1994, os Darts entraram na Justiça dos Estados Unidos, exigindo o pagamento integral daquele pacote de títulos.
O então presidente do Banco Central do Brasil, Pedro Malan, assumiu a condução da encrenca com duas providências prévias: depositou as reservas externas do Brasil no Banco de Compensações Internacionais (BIS), o tal banco central dos bancos centrais, para blindar esses ativos contra eventuais sequestros autorizados por decisão judicial. E orientou o Banco do Brasil, detentor de um volume de títulos da dívida brasileira superior ao da família Dart, a também não aceitar os termos da reestruturação da dívida.
A participação do Banco do Brasil nesse jogo aparentemente contra os interesses imediatos do Brasil foi decisiva. Uma cláusula do contrato de renegociação admitia, sim, o pagamento integral dos títulos em poder dos credores que recusassem a renegociação - desde que aceita pela maioria deles. Como a maioria de votos dos holdouts estava com o Banco do Brasil, não sobrou opção aos Darts senão negociar diretamente com o governo brasileiro, em situação de inferioridade, ao contrário do que acontece com os fundos abutres, que têm agora a faca e o queijo na mão.
Em 1996, já no governo Fernando Henrique Cardoso, o Banco Central fechou um acordo pelo qual a família Dart receberia os atrasados até 2007. O fim dessa história aconteceu alguns meses depois, quando os Darts se desfizeram de seu lote de títulos no mercado, pelo total de US$ 1,3 bilhão.
A lição que ficou foi a de que, como na vida, não dá para evitar os predadores. É preciso saber como enfrentá-los.