Alexandro Auler/JC |
A vítima O aborto permitiu à menina de 9 anos engravidada pelo padrasto recuperar um pouco da sua infância |
O drama da menina de 9 anos grávida de gêmeos depois de ter sido estuprada pelo padrasto chamou outra vez a atenção do país para a pedofilia – um crime nefando que, ao contrário do que se imagina, é praticado em todos os degraus da pirâmide social. Uma reportagem desta edição de VEJA mostra como os abusos sexuais cometidos contra crianças das classes mais abastadas, antes acobertados pelo manto da vergonha familiar, começaram a ser denunciados de cinco anos para cá, graças a normas previstas no Estatuto da Criança e do Adolescente. Elas obrigam professores, médicos e responsáveis por creches a notificar às autoridades qualquer suspeita de maus-tratos cometidos contra menores. Como meninas e meninos abusados costumam apresentar um comportamento esquivo, além de sintomas físicos, um profissional mais atento pode dar fim a histórias escabrosas, em geral cometidas pelo pai ou padrasto das pequenas vítimas.
A lei brasileira permite o aborto em caso de estupro e quando o feto põe em risco a vida da mãe. A menina de 9 anos enquadrava-se em ambas as situações e, por isso, foi submetida ao procedimento. Quando se supunha que essa terrível parte de sua breve história havia chegado a um fim, se não exatamente feliz, ditado ao menos pela racionalidade e pela comiseração (como poderia uma criança de 9 anos sobreviver a um parto complicado? Como poderia uma criança de 9 anos tornar-se mãe, e de filhos gerados por um estupro?), eis que entra em cena o arcebispo de Olinda e Recife, dom José Cardoso Sobrinho, para anunciar que todos os católicos envolvidos no aborto, com exceção da maior interessada, estavam excomungados automaticamente, em obediência ao previsto no Código Canônico, o conjunto de leis que rege a Igreja. Hoje, quando um católico é excomungado, isso significa basicamente que ele não tem mais direito aos sacramentos, já que, de acordo com a origem latina da palavra, foi excluído do convívio da comunidade católica por atentar contra um dogma da Igreja. Coisa bem diferente ocorria na Idade Média, quando a excomunhão se traduzia praticamente numa sentença de morte, visto que o atingido pelo anátema era banido da sociedade e se tornava um intocável. Na entrevista das páginas amarelas desta edição, o prelado, alvo da fúria dos grupos pró-legalização do aborto em todas as circunstâncias, explica as razões doutrinárias de seu gesto. É um contrassenso acusar o arcebispo de seguir estritamente as regras da instituição da qual faz parte. Mas é também um alívio dar-se conta de que vivemos em uma sociedade laica, em que a separação entre Igreja e estado tirou da hierarquia católica o poder temporal de infligir castigos a quem contraria seus códigos e leis. Graças a Deus.