Em março de 1921, a Oração aos Moços, de Rui Barbosa, foi ouvida na
sessão solene da formatura da turma de 1920 da Faculdade de Direito de
São Paulo. Rui foi o paraninfo dessa turma e para ela, que se empenhou
em homenageá-lo no jubileu de ouro da sua formatura, escreveu a Oração
aos Moços, que foi lida pelo professor Reinaldo Porchat, pois Rui,
adoentado, não pôde comparecer à cerimônia, que, nas suas palavras,
assinalava os seus "50 anos de consagração ao Direito" no "templo do
seu ensino na São Paulo", onde estudou e se formou em 1870 e teve como
colegas Castro Alves, Joaquim Nabuco, Rodrigues Alves e Afonso Pena.
A Oração aos Moços tem sido qualificada como o testamento político de
Rui. Pode ser considerada uma explicitação do seu legado. Foi, como
disse, uma oportunidade para, no termo da sua existência intelectual,
tratar do significado da sua lida com o Direito.
Rui é um paradigma em nosso país dos advogados que se valeram do
Direito como instrumento de ação política, como observou Afonso
Arinos. Por isso viveu os grandes temas do Direito, que dominava em
profundidade, em função do agir, como realçou Miguel Reale.
Em discurso no Instituto dos Advogados (18/5/1911) Rui, nessa linha,
afirmou que o trato usual do Direito ensina e predispõe a desprezar a
força, apontando que "os governos arbitrários não se acomodam com a
autonomia da toga nem com a independência dos juristas". Daí o
positivo papel dos advogados na vida de uma democracia. Na Oração aos
Moços explicita que se dedicou, desde os bancos acadêmicos, à tarefa
de "inculcar no povo os costumes de liberdade e à República as leis do
bom governo, que prosperam os Estados, moralizam as sociedades e
honram as nações". Destaca o papel da Justiça e observa que ela tem
dois braços: "a magistratura e a justiça". Critica os "togados que
contraíram a doença de achar sempre razão ao Estado, ao governo". Na
missão de advogado engloba uma espécie de magistratura: a da justiça
militante. Nisso inclui: "Não colaborar com perseguições ou atentados
nem pleitear pela iniquidade ou imoralidade. Não se subtrair à defesa
das causas impopulares nem das perigosas, quando justas".
A Oração aos Moços tem a característica de um local de memória da
tradição cívica jurídico-política da Faculdade de Direito, que Rui
encarnou e da qual é um grande ícone. Noventa anos depois de ter sido
proferida, cabe a pergunta sobre sua atualidade.
Bolívar Lamounier apontou que o legado de Rui enfrentou, no correr dos
anos, uma dupla desqualificação. Uma, proveniente do pensamento
autoritário da direita, outra, do pensamento autoritário da esquerda.
Assim, por exemplo, seja na perspectiva da ditadura republicana dos
positivistas, seja na da ditadura do proletariado dos comunistas, a
militância de Rui em prol da democracia e do governo das leis foi
impugnada. Viu-se desacreditada por não levar em conta as diferenças
que separam o Brasil real do Brasil legal, o ser do dever ser, a
infraestrutura da superestrutura.
A depreciação deslegitimadora do que foi tido como o formalismo
liberal e juridicista de Rui oculta, como realçado por Bolívar
Lamounier, o significado e a atualidade da sua ação em prol da
formação da esfera pública e da construção institucional da democracia
no Brasil.
Nessa construção, uma vertente é o tema da ampliação da cidadania nos
seus componentes civil, político e social. Rui cuidou desse tema desde
o tempo de estudante, integrando com o ardor da justiça militante a
campanha abolicionista e a luta contra a escravidão.
Da sua agenda, nesta vertente, cabe lembrar, com a instauração da
República, a separação da Igreja e do Estado e, com isso, a laicidade
da esfera pública e a liberdade de culto; a afirmação do voto como a
primeira arma do cidadão e a liberdade como a sua condição
substancial; a defesa da "extensão cada vez maior dos direitos
sociais", que põe limites nas "noções jurídicas do individualismo".
A outra vertente foi a da construção de instituições democráticas, a
que Rui se dedicou no seu empenho político de ser "o mais
irreconciliável inimigo do governo do mundo pela violência" e "o mais
fervoroso predicante do governo dos homens pelas leis", como disse no
Instituto dos Advogados em 1911. Suas duas campanhas para a
Presidência da República, seu papel no Senado e na imprensa têm esse
significado exemplar, assim como sua ação diplomática na Segunda
Conferência da Paz de Haia, em 1907.
Na sua lida de "sujeitar à legalidade os governos, implantar a
responsabilidade no serviço da nação", opor-se "à razão de Estado"
como "negação virtual de todas as Constituições", insere-se o papel
que teve na criação do Supremo Tribunal Federal (STF) na nossa
primeira Constituição republicana e na subsequente sustentação do
"direito-dever" do STF "de guardar a Constituição contra os atos
usurpatórios do governo e do Congresso", como afirmou no Instituto dos
Advogados em 1914.
Em síntese, com o reconhecimento do valor da democracia, que a
Constituição de 1988 positivou, vem perdendo terreno, em nosso país,
sua desqualificação no espectro político, tanto à esquerda quanto à
direita. Daí a atualidade do legado de Rui e a continuidade da
importância da Oração aos Moços, passados 90 anos da sua inserção no
mundo público. Com efeito, é visível para todos sem maiores
necessidades de exemplificação que, no Brasil, a plena realização do
valor da democracia é estrada com muitas etapas de construção
institucional e cidadã a serem percorridas. Por isso, como disse
Oswald de Andrade em 1949, Rui, "como a semente do Evangelho que
precisa morrer para frutificar, (...) soube sempre morrer pelo dia
seguinte do Brasil".