Ciclone sobre o Parlamento Gaudêncio Torquato
Política

Ciclone sobre o Parlamento Gaudêncio Torquato


O ESTADO DE S PAULO
Fechar o Parlamento? De pronto, a interrogação provoca profunda contrariedade para com aqueles que, apesar de intenção contrária, expressam uma ideia nessa direção, como o bem-intencionado senador Cristovam Buarque (PDT-DF), que sugeriu, em entrevista, a realização de um plebiscito para saber se a população quer manter aberto o Congresso. Ele quis argumentar, pinçando um exemplo extremado, sobre a caótica situação que corrói o estoque de credibilidade da representação política, agravada nas últimas semanas por uma bateria de denúncias envolvendo favorecimentos, uso inadequado de verbas, estruturas superdimensionadas e montagem de aparatos, principalmente na Câmara Alta. Mais eficaz, porém, que rebater companheiros - até porque discursos indignados não levam a nada - os senadores deveriam deblaterar sobre alternativas viáveis para revigorar o corpo flagelado de nossa democracia representativa.

Antes de mais nada, importa dizer que a onda corrosiva que devasta a imagem do Parlamento é uma variante da procela que assola o poder público no Brasil, cujos afluentes se espalham nas administrações federal, estadual e municipal com os nomes de filhotismo, compadrio, mandonismo, fisiologismo, privatização da coisa pública. Há um monumental PIB sugado das tetas da mãezona Estado. O Legislativo, por sua vez, é o mais aberto dos Poderes, por representar diretamente os interesses da população. Tudo que ali se faz está às vistas da mídia, que invade suas entranhas, escancarando as contrafações ali acumuladas ao longo de décadas, deixando de lado a agenda positiva dos congressistas. Mas a crise, como se sabe, vai além dos desvios recentes. Suas sementes se espalham por muitos terrenos, a começar pelo gigantismo detalhista que açambarca o texto da Constituição de 1988, situação que limita a atividade do legislador ordinário. Para piorar, há mais de 60 emendas que tornam excessiva a malha normativa, massacrando a força criadora e inovadora do corpo parlamentar. A fotografia fica ainda borrada quando se adiciona a tinta da "fazeção" que impregna a cultura política, consistindo nesta equação: quanto mais leis produzir mais bem avaliado será o Congresso.

O deputado e o senador se sentem impelidos a fabricar "salsichas", aliás, projetos. Se não os fazem, passam a ser considerados nulos. E aí esbarram no desânimo. Uma quantidade mínima de projetos tem condições de chegar à reta final de votação em plenário. São os que passam pelo acordo de lideranças. Mas a barreira maior está adiante e se chama Executivo legiferante, que, fazendo ouvidos moucos aos apelos para deixar o Legislativo exercer por inteiro seu papel, o inunda com uma enchente de medidas provisórias. O presidente da Câmara, Michel Temer, com eficaz interpretação, na qual pondera sobre os eixos de igualdade e independência entre os Poderes, delimita a aplicação das MPs à esfera da legislação ordinária. Trata-se de um avanço. Mas as distorções vão além do uso de instrumentos extraordinários pelo Executivo.

O nosso hiperpresidencialismo favorece a centralização das decisões e a personalização do poder. Logo, para usar a imagem popular, o Legislativo come na mão do Executivo, dependendo dele para efeito de liberação de emendas orçamentárias. Nesse caso, vislumbra-se outra fonte de águas sujas: o orçamento autorizativo, que deixa o Executivo com a palavra sobre aplicação de recursos. Tivéssemos um orçamento impositivo, o governo perderia a condição que hoje detém para contingenciar verbas, realizar cortes e executar discricionariamente a programação de recursos. Com o arsenal sob sua guarda, o presidencialismo se acha no direito de construir uma democracia delegativa. O mandatário se considera legitimado pelo voto para implementar suas ações por mecanismos autoritários. A conclusão, que pode parecer antinômica, é esta: estamos vivenciando um padrão de "democracia autoritária".

O dicionário da perda de forças do Parlamento exibe mais letras. Chegamos, agora, ao J do Judiciário. A polêmica sobre a ação do Poder Judiciário como legislador positivo e suas decisões aprovadas pela opinião pública, convenhamos, contribui para esmaecer a força do corpo parlamentar. O fato é que o debate político se imbrica, hoje, ao debate jurídico. Se os juízes põem suas decisões sobre a mesa da política é porque há vazios constitucionais que precisam ser preenchidos. Mais uma vez, a conclusão bate no confessionário de culpas de um Legislativo que deixou abertos alguns buracos constitucionais. No fluxo desse processo, multiplicam-se provimentos judiciais cautelares, sob o selo do provisório, e não do definitivo, espraiando insegurança jurídica na vida institucional.

Como o Congresso poderia ser forte com laços tão frágeis? Como a engenharia de imagem poderia ser ajustada com tantos parafusos soltos? Essa é a moldura que deveria ser objeto de análise. Restaria, por último, fazer um esforço noutra direção. Por exemplo, reforçar os eixos da democracia participativa. A nossa Constituição conjuga os vetores da democracia representativa com outros da democracia participativa. Agregue-se a essa disposição a intensa organização da sociedade, caracterizada por movimentos, núcleos, associações, federações, sindicatos, etc. O pensador Claude Lefort considera que, hoje, a representação política só adquire eficácia se contar com o apoio de uma rede de associações capazes de vocalizar as demandas coletivas. Pois bem, sob esse argumento justifica-se a maior utilização dos mecanismos de participação nos processos legislativo (iniciativa popular, referendo, plebiscito, audiências públicas) e de fiscalização e acesso a dados públicos, todos previstos na Constituição. Seria uma forma de os parlamentares abrirem os olhos e os ouvidos ao clamor da sociedade.

Sob essa configuração, o Congresso sustaria os passos no despenhadeiro da imagem. E a imprensa, por sua vez, passaria a realçar sua transcendência para a democracia brasileira.



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