Silvia Rogar
Arquivo pessoal | A MÉDIUM ADELAIDE e um bico de pena do cacique que encanta prefeitos e empresários |
Por mais que a ciência avance no conhecimento dos fenômenos naturais, as variações climáticas continuam a contrariar as previsões. Dá-se como certo que vai fazer um solão no fim de semana, e lá vem uma frente fria inesperada e atrapalha tudo. Os meteorologistas anunciam um inverno chuvoso, e logo o ar seco está irritando olhos e gargantas. O clima é caótico. Ele sofre interferências complexas das correntes de grande altitude, do grau de absorção da luz do sol pela superfície do mar, da força e direção das correntes marítimas e até das mais leves alterações na composição dos gases que formam a atmosfera. Já foi descrito como um sistema em que "uma borboleta batendo asas em Tóquio pode provocar uma tempestade em Nova York". Se é quase impossível prever o clima, o que se dirá então da tarefa de modificá-lo, ora expulsando nuvens de chuva para evitar enchentes, ora fazendo-as se concentrar sobre áreas devastadas pela seca para aliviar os flagelados. Pois não é que as prefeituras das duas maiores cidades brasileiras, São Paulo e Rio de Janeiro, assinaram convênios com a Fundação Cacique Cobra Coral, que se anuncia como tendo poder de interferir nos fenômenos climáticos através de uma entidade espiritual?
A possibilidade da existência de mistérios entre o céu e a terra não é algo assim tão distante das convicções de milhões de brasileiros. Mas daí a celebrar convênios oficiais com espíritos vai um longo caminho. A surpresa maior é as prefeituras estarem plenamente satisfeitas com os resultados. No Rio de Janeiro, o convênio do outro mundo começou em 2002, na gestão do prefeito Cesar Maia, um tipo meio excêntrico, crédulo mas bom administrador. Ele atribui sem rodeios à atuação do espírito do cacique o fato de o Rio de Janeiro não ter sofrido nenhuma tragédia climática durante seus dois últimos mandatos de prefeito. Cesar Maia disparou um e-mail para a prefeitura de São Paulo, que ainda estava sob o comando do atual governador José Serra, recomendando ao colega que buscasse a mesma proteção espiritual para a cidade. Coube ao vereador paulistano Ricardo Teixeira, então secretário adjunto de Coordenação das Subprefeituras, cuidar da assinatura da parceria. Lembra ele: "Aceitamos a sugestão do Cesar Maia e, depois de assinar o convênio, durante o ano e meio que passei na administração de São Paulo não registramos nem uma morte sequer que possa ser debitada às chuvas".
A metafísica ganhou também a adesão dos sucessores de Cesar Maia e José Serra. Em São Paulo, a administração do prefeito Gilberto Kassab informou que o convênio, assinado por tempo indeterminado e sem custo para os cofres da cidade, não foi revogado. No Rio de Janeiro, o secretário municipal de Obras, Luiz Antonio Guaraná, diz que pensou em dispensar os serviços do cacique. Bastou que caíssem as primeiras chuvas do verão no começo do ano para que ele se agarrasse às mesmas crendices da administração anterior. O convênio foi prontamente restabelecido. "Brinquei com o Guaraná que, entre ele e a fundação, eu ficaria com a fundação", diz o prefeito Eduardo Paes, justificando a prorrogação do contrato de serviços do além. Paes já encomendou à fundação uma nova "operação de alteração climática". Ele quer um veranico, a súbita elevação passageira dos termômetros em pleno inverno, com que espera controlar o surto da gripe suína, cuja propagação se beneficia das baixas temperaturas. O prefeito Paes ficou convertidíssimo depois de atribuir a uma operação do cacique o sucesso da visita do Comitê Olímpico Internacional, no mês de maio, para avaliar a candidatura do Rio de Janeiro aos jogos de 2016. Diz Paes: "Choveu durante as sabatinas no hotel, mas o sol se abriu na hora das visitas aos locais das provas. Até ventou na apresentação das instalações da vela. As condições climáticas foram perfeitas".
O esoterismo e o mundo oficial são antigos parceiros no Brasil. Ministro de Minas e Energia no governo do general João Figueiredo, o engenheiro César Cals recorria às visões de uma médium para tentar localizar jazidas de minérios no subsolo brasileiro – e não fazia nenhum segredo disso. O chefe da Casa Militar do governo do sociólogo Fernando Henrique Cardoso, general Alberto Mendes Cardoso, era médium e incorporava o espírito do "Dr. Amaro", através de quem diz ter curado muita gente. Os convênios para domar o clima, no entanto, superam em ousadia todas as experiências anteriores de colaboração oficial vinda do além. A fundação nada cobra por suas operações, mas exige dos governantes a contrapartida na forma de obras contra enchentes ou secas.
O cacique Cobra Coral se apresenta aos mortais pela intermediação da paranaense Adelaide Scritori, de 54 anos. Antes de se embrenhar na selva brasileira, ele teria sido ninguém menos do que o italiano Galileu Galilei, o físico e matemático que criou a ciência moderna no século XVI. Fosse isso pouco, segundo Adelaide, o cacique mais tarde encarnou-se em Abraham Lincoln, o 16º presidente dos Estados Unidos, que aboliu a escravidão e manteve o país unido ao cabo de uma guerra civil em que morreram 620 000 pessoas. Difícil precisar que lustros os dotes de um cacique poderiam acrescentar à formidável soma das biografias de Galileu e Lincoln. O próprio cacique, porém, cuida de ter assessores muito bem equipados. Para saber exatamente onde e como exercer sua "força espiritual" para mudar o clima, Adelaide usa orientações técnicas de um professor aposentado da Universidade de São Paulo (USP) e de um pesquisador do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe).
A médium Adelaide está mais focada nos políticos: "Eles já sabem que o nosso trabalho não soluciona todos os problemas climáticos. Ele funciona como um air bag, algo que reduz as consequências piores de uma batida, mas que só adianta se o automóvel estiver com a manutenção em dia". Quando não está em suas operações mediúnicas, Adelaide administra ao lado do marido, Osmar Santos, uma corretora de imóveis e de seguros, as Organizações Tunikito. A compensação financeira indireta e, até onde se sabe, voluntária feita pelos políticos se resume a eles fazerem seus seguros pessoais através da Tunikito. No caso de convênios privados, a fundação atua através da La Niña, agência meteorológica da Tunikito que cobra cerca de 10 000 reais, fora passagem, hotel e demais despesas da médium e seus acompanhantes. Entre os empresários usuários constantes dos serviços do cacique, está o publicitário carioca Roberto Medina, do Rock in Rio. Em seu livro autobiográfico Vendedor de Sonhos, Medina escreveu: "O cacique já quase faz parte da empresa". Deixa uma borboleta bater mais forte as asas em Tóquio...!
Fotos Marcos Arcoverde/AE e Raimundo Pacco/Folha Imagem | PAES E MAIA O atual e o ex-prefeito do Rio: unidos pela metafísica meteorológica |