O Brasil, como era previsível, assumiu seu papel protagonista no conflito Colômbia-Venezuela. Não como mediador, como queria Lula, mas como parte, o que o desqualifica para ação arbitral a que se propôs. Arbitragem pressupõe neutralidade, isenção.
O presidente da Colômbia, Álvaro Uribe, não crê que Lula a tenha. Considerou "deploráveis" os comentários que fez sobre a crise. Em breve comunicado, disse que Lula ignora a ameaça representada pela "presença de terroristas" em território venezuelano.
"O presidente da República deplora que Lula, com quem cultivou as melhores relações, se refira à nossa situação com a Venezuela como se fosse um caso de assuntos pessoais, ignorando a ameaça que representa para a Colômbia e o continente a presença dos terroristas das Farc (Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia) nesse país", diz a nota oficial, emitida quinta-feira.
O ponto é este: as Farc não são um movimento social ou político, mas uma organização criminosa, que trafica drogas – inclusive para o Brasil -, rouba gado, mata, sequestra e mantém campos de concentração na selva, com mais de dois mil prisioneiros, aos quais dispensa tratamento desumano.
Nesses termos, não há diálogo possível. Seria o mesmo que sugerir ao governo brasileiro que, em vez de combater o crime organizado no país, buscasse diálogo com o Comando Vermelho e o PCC. Tanto as Farc têm essa qualificação abjeta que ninguém quer assumir que tem ou teve relações com elas, nem o PT, nem Chávez.
O PT, acusado pela campanha de José Serra de tê-las, entrou na Justiça para reclamar retratação. E está processando a revista Veja por reportagens em que sustenta, com dados objetivos, aquele relacionamento. Na Justiça, o partido terá oportunidade de refutá-los. Não será fácil, considerando-se os indícios.
Lula afirmou há dias que jamais teve relações com as Farc, embora as tenha convidado a integrar o Foro de São Paulo, entidade que, como presidente do PT, fundou em 1990, ao lado de Fidel Castro. As Farc participaram do Foro até 2002, quando sequestraram a senadora Ingrid Bettencourt, então candidata a presidente da Colômbia. Continuaram, porém, a participar como ouvintes de suas reuniões, inclusive a última, em 2008, em Montevidéu.
Em uma das atas do Foro, ainda presidido por Lula, referente às reuniões dos dias 4 a 7 de dezembro de 2001, em Havana, consta a decisão de "apoiar e encorajar os processos de diálogo desenvolvidos pelas Farc - Exército do Povo – e o ELN, em busca de soluções diferentes à guerra para a grave crise colombiana e o conflito social, político e armado, ficando à disposição, na medida de nossas possibilidades e das necessidades dos processos".
A ata, disponível na internet, intitula-se "Resolução de condenação ao Plano Colômbia e apoio ao povo colombiano". E acusa "o terrorismo de Estado que segue assassinando a população paralisada pela ação de seus grupos paramilitares". Considera a crise colombiana "produto das políticas desenvolvidas pelo Estado e seus diferentes governos".
Ou seja, as Farc seriam um grupo político legítimo, vítima de políticas de Estado, cujos "processos de diálogo" devem ser apoiados e encorajados. Os "processos de diálogos" das Farc podem ser conhecidos nos relatos da ex-senadora Bettencourt.
Já como presidente da República, Lula, em 2008, sugeriu que as Farc se transformassem em partido político e disputassem eleições. Em ambas as situações, ignorou o caráter criminoso da ação da guerrilha. Em 1999, Marco Aurélio Garcia, hoje assessor especial de Lula, procurou, em nome do PT, o então chanceler Luiz Felipe Lampreia para oferecer-se como mediador do governo brasileiro junto às Farc. A oferta foi recusada.
O presente conflito entre Venezuela e Colômbia, com rompimento de relações diplomáticas, tem as Farc como tema. O presidente da Colômbia acusa Hugo Chávez de acolhê-las no território venezuelano e dar-lhes apoio logístico e armamentos. Encaminhou farta documentação comprobatória à OEA.
Parte substantiva dessa documentação, incluindo vídeos, está na internet. Como resposta, Chávez rompeu relações. No início do ano, o governo da Suécia pediu esclarecimentos ao governo da Venezuela pelo desvio de armamentos que vendeu àquele país, encontrado com os guerrilheiros das Farc.
A venda tinha cláusula de exclusividade de uso pelas forças armadas venezuelanas. Chávez, mais uma vez, apenas negou, sem esclarecer objetivamente a reclamação. E por aí vai. Os fatos não combinam com as manifestações de repúdio e o governo brasileiro envolveu-se nesse novelo de contradições.
Ruy Fabiano é jornalista