Cora Ronai O diário de Havana
Política

Cora Ronai O diário de Havana


O Globo

Os cubanos têm um carnê de racionamento que lhes dá direito a comprar uma cesta básica em pesos

E assim foi: fui num pé, voltei no outro. Durante uma semana, vi muita coisa, bati muita perna, conversei com muitos cubanos. Me hospedei num hotel de luxo e me hospedei na casa do amigo da amiga de um amigo; comi em restaurantes estatais, todos muito ruins, e comi em excelentes paladares, os pequenos restaurantes dos novos empreendedores, geralmente montados nas suas próprias casas. Fui a supermercados, fui a vendinhas e fui a umas poucas lojas. Tomei sorvete na famosa sorveteria Coppelia, mas desisti de pedir um daiquiri no não menos famoso restaurante La Floridita porque seria um desperdício, já que não bebo álcool. À minha volta, no balcão e nas mesas do salão vermelho, dezenas de turistas contemplavam, encantados, as taças com rodelas de limão espetadas, numa cena totalmente anos 1950; do lado de fora, uma frota de carros antigos os esperava, para completar com perfeição a viagem no tempo.

Fiz um diário de viagem, que postava para a família e para os amigos. Escrevia antes de dormir, no celular, e no dia seguinte, no final da tarde, me conectava do Hotel Parque Central, que cobra a fortuna de US$ 9 por hora pela mercadoria exclusivíssima. Internet em Cuba é luxo até para estrangeiros.

"Primeiríssimas impressões: Havana é maravilhosa, mas não é", escrevi. "É linda e pitoresca para quem vem turistar e tem passagem de volta para outro lugar, mas viver aqui é uma luta. Tudo é difícil, com exceção do que é impossível. Internet, por exemplo. Não há cibercafés nem lan houses (que vi às pencas até no Tibete, há alguns anos). Pode-se acessar, mal, de alguns poucos hotéis, a um custo exorbitante, totalmente fora do alcance dos cubanos. Os restaurantes são bonitos e têm de tudo — mas, novamente, estão fora do alcance dos nativos."

É preciso explicar que há duas moedas em Cuba. Os CUCs, pesos convertidos, e os pesos cubanos. Os pesos são a moeda habitual dos cubanos; os CUCs são a moeda forte utilizada pelos turistas. Um CUC, que vale um pouco mais do que US$ 1, custa 25 pesos. Apenas o básico do básico pode ser comprado em pesos; o resto se paga com CUCs. Itens como sabonetes ou pasta de dentes, disponíveis para quem paga em CUCs, vivem em falta nas lojas que vendem em pesos. O problema é que apenas os cubanos que trabalham para turistas ou têm parentes fora têm acesso a CUCs; os demais são obrigados a se virar com salários em pesos.

"As pessoas que encontrei até agora são umas simpatias, a música é sensacional, a cidade é o sonho de qualquer pessoa que gosta de fotografar, mas viver no mundo paralelo do turismo, que tem até a sua própria moeda, é tão constrangedor que chega a ser ofensivo", continuei. "Passei o dia com dor na consciência, como se comer direito e me hospedar com conforto fossem atos vagamente criminosos, dos quais precisasse me envergonhar."

Essa sensação permaneceu comigo até o fim da viagem.

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"Se você acordar cedo, fizer café e ficar parada na porta de casa vendendo cada xícara a um peso, no fim do dia vai ter ganhado mais do que se trabalhar o mês inteiro", disse o motorista que me levou para ver Havana. O motorista é engenheiro. Formou-se em Cuba, fez pós-graduação na Ucrânia, fala três línguas e tem um Lada velhíssimo com que tenta pagar as contas. Deixou de trabalhar na profissão porque não conseguia viver com o salário de 400 pesos. Apenas com o tour que fizemos de manhã ganhou 20 CUCs, ou 500 pesos. Está namorando uma válvula de descarga que custa 568 pesos, 168 a mais do que o antigo salário.

Infelizmente ele não tem muitos tours na agenda, porque os turistas preferem os belos carros americanos antigos ao seu pobre carrossauro soviético. Eu também preferiria, mas não tive coração de recusar os seus serviços por causa de uma questão automobilística. Sua mulher é médica, tem duas especialidades e ganha um dinheirão em termos cubanos: 1,7 mil pesos, o equivalente a US$ 68 mensais. Com isso pode comprar quase nove copos de vidro numa loja de importados.

Como sobrevivem os cubanos? Nem eles sabem responder. Todos têm um carnê de racionamento que lhes dá direito a comprar uma cesta básica em pesos: arroz, feijão, óleo, açúcar, um frango, fósforos. Ovos, verduras e legumes também podem ser encontrados a preços razoáveis. Para o resto, CUCs.

Pedi para ir a um supermercado. Fomos a um supostamente bem abastecido, numa zona melhorzinha. Nas poucas prateleiras em que havia alguma coisa, os preços eram inatingíveis para o grosso da população. Os fregueses compram um sabonete, um pacote de queijo, umas latinhas. Bolsas devem ser deixadas do lado de fora; na saída, o conteúdo das sacolas de compra é conferido com o tíquete do caixa.

As poucas lojas do shopping seguem padrão parecido. Pouquíssima mercadoria, em geral de marcas desconhecidas. As exceções são Adidas e Samsung. Um engenheiro cubano precisa trabalhar cinco meses para comprar um tênis, um ano para comprar um micro-ondas.

Na volta, paramos para tomar sorvete na Coppelia. Fila gigantesca — exceto para estrangeiros, que dispõem de um salão reservado. Só havia chocolate, baunilha e mesclado de chocolate e baunilha. Perguntei se o embargo era responsável pela pouca variedade de sabores.

— O embargo é responsável por outros males, mas não por esse — respondeu o meu novo amigo. — Há poucos sabores porque as pessoas estão desmotivadas. Afinal, qual é o estímulo para fazer bem feito se você ganha 400 pesos por mês?

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