Se o Natal é por excelência um tempo de olharmos os outros e sentirmos as suas dificuldades, este ano, pelas razões que todos conhecemos, estes sentimentos tornam-se ainda mais salientes. O país chegou a um estado onde o desemprego, a fome e a miséria atingiram níveis até há pouco inimagináveis. Basta ver, no nosso círculo de amigos, familiares ou conhecidos, a quantidade de pessoas que perderam o trabalho neste último ano. Vidas à deriva, na corda bamba, procurando desesperadamente no futuro uma esperança que teima em não aparecer.
É nesta quadra natalícia, tipicamente solidária, que surgem as mais variadas iniciativas procurando atenuar as dificuldades dos tempos nos mais diversos setores da população. Das campanhas de recolha de alimentos aos pedidos de donativos, iniciativas generosas que nos lembram que há quem esteja a passar sérias dificuldades. Gente que precisa de ajuda, que precisa de um país solidário, mais atento do que nunca às necessidades de quem, por uma razão ou por outra, se encontra numa posição vulnerável.
As funções de solidariedade social que devem ser asseguradas pelo Estado são, como se sabe, objeto de intenso debate político. Diria até que o Natal devia ser uma época por excelência para discutir estas funções. Qual o papel do Estado no desenvolvimento de redes de solidariedade social? Até onde deve o Estado ir? Simplificando-as ao limite, podemos brevemente apresentar as visões diferentes que a esquerda e a direita têm a este respeito. Assumindo que os indivíduos não partem de posições comuns, não tendo por isso a possibilidade de ter as mesmas oportunidades, a esquerda considera que o Estado tem um papel fundamental na redistribuição dos recursos. Defende por isso um Estado solidário, com amplas responsabilidades sociais (educação, saúde, segurança social), capaz de atenuar diferenças e de garantir a dignidade dos que mais precisam. A direita liberal, por seu turno, considera que o Estado deve evitar assumir tal função social porque exerce-a tipicamente mal, devendo deixar à sociedade a capacidade de gerar mecanismos de assistência mútua (e.g. Santa Casa da Misericórdia, Banco Alimentar). Considera por isso que se deve libertar ao máximo o indivíduo do assistencialismo que muitas vezes o convida ao sedentarismo e à mais profunda das inatividades.
O leitor com certeza saberá qual a perspetiva defendida por quem escreve estas linhas. Considero sobretudo que o Estado tem de ter capacidade de assistir e de potenciar, de forma inteligente, quem mais precisa nestes momentos. E considero também que estes são momentos onde se consegue destrinçar com particular clareza a diferença entre a caridade e a solidariedade. A primeira procurando acudir de forma mais ou menos genuína, mas tendo sobretudo como objetivo atenuar pontualmente um problema. Deve valer, portanto, como tal. A segunda batendo-se por garantir a dignidade dos indivíduos, no quadro de uma conceção muito mais ampla de direitos mínimos que devem ser assegurados com vista a determinar a coesão social.
Neste sentido, sendo as ações de caridade naturalmente necessárias, exige-se particular inteligência quando consideramos que as mesmas podem ter um papel estrutural na atenuação de problemas sociais. Tendo sido mais do que dissecadas em todo o tipo de painéis, as tristemente famosas declarações da presidente do Banco Alimentar tiveram pelo menos o condão de mostrar com clareza porque é que não se pode, nem por um segundo, considerar a caridade como substituta dos mecanismos do Estado Social. Pelo contrário, deve ser considerada complementar e até indiciadora da necessidade de mais Estado Social. Utilizando a expressão celebrizada por José Barata Moura, cuidado com a “caridadezinha”.
Artigo ontem publicado no Açoriano Oriental