Daniel Dantas foi condenado em primeira instância por tentar
subornar um delegado federal. É um fato a ser comemorado,
mas não confundido com "os desejos e aspirações do povo"
Patricia Stavis/Folha Imagem |
ADJETIVOS DEMAIS O juiz De Sanctis: sentença de 310 páginas e ainda mais adjetivos. A defesa de Dantas pedirá sua anulação |
A condenação do banqueiro Daniel Dantas a dez anos de prisão por corrupção ativa merece comemoração. É o primeiro dos processos criminais a que ele responde que logrou chegar a uma sentença – furando a muralha de liminares e outros recursos do sistema penal brasileiro que faz a alegria dos bons (e caros) advogados. O banqueiro é um personagem que, nos últimos anos, esteve por trás, quando não no centro, de nove entre dez escândalos político-financeiros que eclodiram no país. Sua condenação não deveria, porém, ser maculada por um comportamento que, no Brasil, vem se tornando perigosamente recorrente: aquele que, a pretexto de contemplar "os desejos e aspirações do povo", acaba resvalando para excessos que beiram a arbitrariedade e que, no fim, ameaçam comprometer a eficácia do Poder Judiciário.
Do ponto de vista técnico, é quase um milagre que a Justiça tenha encontrado elementos sólidos para condenar Dantas. O trabalho policial de coleta de provas conduzido sob o sugestivo título de Operação Satiagraha, de inspiração oriental, foi um dos mais exóticos de que se tem notícia. A princípio entregue ao comando do delegado da Polícia Federal Protógenes Queiroz, a operação produziu um relatório de mais de mil páginas e deixou um rastro de ilegalidades quase tão vistosas quanto as do investigado. Por lisérgico, ilegível e desprovido de foco ou lógica, o texto inicial teve de ser refeito por uma autoridade policial serena, o delegado Ricardo Saadi. Da investigação de Protógenes, o que restou mesmo de concreto foi a prisão do empresário Humberto Braz e do lobista Hugo Chicaroni. A mando do banqueiro, eles ofereceram suborno a um delegado federal que se fingia disposto a tirar Daniel Dantas e sua irmã Verônica das investigações.
O flagrante, registrado em vídeo, foi, até agora, o único resultado de toda a custosa operação de vigia, escutas telefônicas e análise de documentos apreendidos, que teve a ajuda, potencialmente ilegal, de cerca de oitenta espiões da Abin, a agência federal de inteligência. O juiz Fausto de Sanctis condenou Dantas pela tentativa de suborno, mas se deixou embalar pela doce melodia ideológica do primeiro relatório da Satiagraha.
Sete advogados e juristas ouvidos por VEJA fizeram um elogio e três críticas unânimes à sentença proferida pelo magistrado. Deixar Daniel Dantas recorrer em liberdade foi uma decisão acertada, segundo os especialistas. "Além de ser réu primário, não há indícios de que estivesse tentando fugir ou ameaçando testemunhas, requisitos para a prisão preventiva", explica o advogado Luiz Fernando Pacheco. Já o tempo da condenação estabelecido pelo juiz, dez anos de detenção, e o alto conteúdo emocional e de subjetividade do seu texto receberam críticas em coro. "Réus primários costumam ter penas próximas do mínimo - que, neste caso, é de dois anos", diz o criminalista Tales Castelo Branco. "No Código Penal antigo, que era mais rigoroso no que diz respeito ao cálculo das penas, mesmo o caso de um reincidente não resultaria numa punição superior a sete anos", completa. Além disso, afirmam os advogados e juristas, o texto carece da sobriedade e da objetividade esperadas de uma decisão judicial desapaixonada. Afirma Castelo Branco: "O subjetivismo pode colocar a imparcialidade do juiz em xeque e, com isso, a validade da sentença".
Sergio Castro/AE |
FLAGRANTE O banqueiro Daniel Dantas, condenado a dez anos de prisão por corrupção ativa. No detalhe, vídeo que mostra dois de seus emissários procurando subornar um delegado da Polícia Federal: o único tiro certeiro da Operação Satiagraha |
Embora a chamada análise da "personalidade do agente" (réu) seja um dos elementos que, segundo o Código Penal, devem ser levados em conta para o cálculo da pena, os especialistas ouvidos por VEJA concordam que De Sanctis exagerou. Entre outras coisas, o juiz arriscou-se a afirmar que o banqueiro é "individualmente ímpar e irracional, egocêntrico" e que, "sem hesitar, acredita no dinheiro não como instrumento legítimo para circulação de bens, mas como algo determinante de suas ações ou omissões". A sentença de 310 páginas não foi a mais longa na carreira de De Sanctis, que precisou de 615 páginas para condenar os envolvidos no caso do Banco Santos. A média para casos tecnicamente complexos, segundo o jurista Luiz Flávio Gomes, costuma ser de vinte a cinqüenta páginas. Os advogados de Dantas já declararam que vão pedir a anulação da sentença "com base no seu subjetivismo, nos juízos de valor proferidos pelo magistrado a respeito de Daniel Dantas e nas ilações feitas no texto em mais de uma oportunidade", como afirma um deles, Nélio Machado. Segundo ele, apenas 34 páginas da sentença discutem a culpa de Dantas e fundamentam a condenação.
Além disso, a defesa dirá que a PF incitou os emissários de Dantas a propor o suborno ao delegado, o que é uma irregularidade capaz de anular o flagrante. Para os advogados do banqueiro, a sentença de De Sanctis estaria contaminada por ilegalidades que teriam sido cometidas pela PF ainda antes da Satiagraha. A sentença foi dada em primeira instância. O julgamento definitivo de Dantas pode levar até dez anos.
A onipresença do banqueiro nos escândalos políticos e financeiros do país e o tratamento apaixonado que parte da polícia, da Justiça e da imprensa decidiu dedicar-lhe estabeleceram uma clivagem entre os que seriam "contra" Dantas e os que seriam "a favor" dele. De acordo com esse juízo, os primeiros seriam os "puros" e os segundos, os "corrompidos". Trata-se de um raciocínio duplamente equivocado: estar "contra o banqueiro" não confere atestado de honestidade a ninguém, como prova a biografia de alguns de seus adversários – entre eles, os profissionais da chantagem arregimentados na internet por Luiz Roberto Demarco, ex-sócio e inimigo figadal de Dantas. Da mesma forma, criticar a contaminação ideológica dos que deveriam promover a Justiça não equivale a defender os que a afrontam. Ambos os equívocos servem aos mesmos propósitos: premiar a má-fé e propagar a impunidade.