Estava fora do alcance de todos, incomunicável; nada poderia me
atingir, pensei, e me senti livre
OUTRO DIA, numa dessas conversas sem compromisso, que não levam a
nada, inventadas para que se possa fingir que não existem as duras
realidades, a brincadeira era cada um contar os melhores momentos que
tinha tido na vida.
Quando chegou minha vez, disse que foram muitos, e tantos, que a
resposta ia ser grande -e foi. Tive que refrescar a memória, pois dos
piores a gente se lembra logo, mas dos melhores é preciso tempo, o que
não deixa de ser injusto.
Isso aconteceu depois de um almoço de domingo; não havia pressa
alguma, e quando vi, estava contando episódios da infância, outros da
vida já adulta, alguns até românticos, veja você. Nenhum deles daria
um livro, nem um conto de duas páginas, mas estavam guardados -ou
esquecidos- dentro de mim, como uma grande riqueza.
Voltei para casa e, já sozinha, voltei a pensar em minhas horas mais
felizes; me surpreendi, lembrando de momentos totalmente diferentes
dos que havia contado. Quais seriam os mais verdadeiros? Vou falar de
só um deles, até porque os outros, tirando a geografia, o ano em que
aconteceram e outros detalhes sem a menor importância, foram
absolutamente iguais no seu significado. Entre eles, um grande ponto
em comum: eu estava só.
Era verão, eu estava na Europa e decidi ir a Londres, cidade que
conheço mal. Não consigo me situar, saber para que lado ir, me acho
sempre perdida e, para complicar, falo mal a língua, o que faz com que
me sinta, sempre, uma total estrangeira. Nessa viagem houve também o
que poderia ter sido um problema, mas não foi, pelo contrário: esqueci
o celular em Paris. Talvez tenha sido proposital, penso agora.
Como ia ficar só cinco ou seis dias, e, a rigor, não precisaria ligar
para ninguém, relaxei. Relaxei e me dei conta de que ninguém, no mundo
inteiro, sabia onde eu estava: nem em que hotel, nem em que cidade,
nem em que país.
Estava fora do alcance de tudo e de todos, incomunicável; nada poderia
me atingir, pensei, e me senti livre, livre como gosto de me sentir,
mas que nem sempre consigo -e olha que nunca fui muito presa às
chamadas convenções.
O tamanho da felicidade que senti -não, a palavra felicidade não é
suficiente. Foi como uma comunicação profunda comigo mesma, uma
liberdade plena e total de existir, sem depender de nada nem de
ninguém, uma sensação do poder completo, no mais alto dos níveis.
É claro que isso não aconteceu em todos os momentos de todos os dias
que passei lá; acho até que, na hora, nem me dei conta direito do que
estava sentindo, só fui perceber depois, só tive consciência mesmo no
dia da tal conversa, no tal domingo, já sozinha, já em casa. Quanta
loucura: saber que me senti dessa maneira anos depois.
Mas valeu. Tenho o hábito de, nos maus momentos, quando parece que
tudo vai dar errado e que não há solução para nada, lembrar de
sensações parecidas, passadas numa praia do Ceará ou dentro de um
avião, o que me dá a esperança -certeza- de que vai passar.
Agora vou me lembrar também de Londres, pois no fundo tudo é bem
parecido. E vou resistir à tentação de voltar em algum outro verão, à
procura do que já foi, pois nenhum tipo de volta dá certo.
E sentir-se só no mundo não é tão ruim como dizem; pode ser, até, um
grande momento.