Um mistério cerca o furioso discurso do presidente Luiz Inácio Lula da Silva na segunda Cúpula América do Sul-Países Árabes, em Doha, capital do Catar. Afinal, a quem ele tentava impressionar com mais uma peroração contra o mundo rico? Talvez a seus colegas venezuelano, Hugo Chávez, e boliviano, Evo Morales, ou a seu antigo público dos comícios sindicais de Vila Euclides. Os árabes têm interesses políticos e econômicos bem diferenciados, em nada semelhantes ao terceiro-mundismo infantil ainda encontrado em alguns governos sul-americanos. Não seriam, portanto, o auditório mais interessado no irado palavrório de Lula nem o mais sensível à sua convocação, repetida pela milésima vez, de uma união dos emergentes - e ali havia poucos destes - para defender seus interesses e evitar um "terremoto social e político" provocado pela recessão global.
Lula atribuiu aos países desenvolvidos a responsabilidade pela crise econômica, pela degradação ambiental, pelos desequilíbrios comerciais e pela insegurança internacional. Nada essencialmente novo, portanto, para quem acompanhou sua retórica nos últimos meses. Dispensou-se, no entanto, de repetir a tolice a respeito da perversidade econômico-financeira dos louros de olhos azuis.
No conjunto, seu falatório foi tão inútil quanto havia sido em Brasília, no encontro com o primeiro-ministro britânico, Gordon Brown, e em Viña del Mar, no Chile, na reunião de governantes que se consideram progressistas. Todos sabem como foi fabricada esta crise, muitas censuras foram feitas e repetidas e, nesta altura, ficar apontando o dedo para os culpados é um exercício redundante e absolutamente inútil para a solução dos problemas imediatos.
Igualmente inútil, neste momento, é brigar pelo modelo de regulação mais adequado para tornar mais seguro o sistema financeiro. O assunto é imensamente importante, mas qualquer novo sistema de controle só poderá servir para a prevenção de novas crises, não para a superação da atual. Há divergências importantes entre europeus e americanos a respeito do assunto, e o presidente Lula tentou se alinhar com os primeiros. A posição europeia - ou predominante entre os europeus, que não estão unidos - é defensável e não se confunde com o neoestatismo pregado entusiasticamente pelo presidente brasileiro. Ele parece não perceber as diferenças. Seus assessores certamente não contribuem para clarear suas ideias e para torná-las pelo menos um pouco menos simplórias.
Lula desfiou sua oratória, em Doha, como se estivesse antecipando sua participação no encontro de hoje, de governantes do Grupo dos 20 (G-20), formado pelas maiores economias desenvolvidas e em desenvolvimento. Esse encontro, em Londres, terá alguma utilidade imediata se os participantes aprovarem substanciais contribuições para o FMI, empenhado em ajudar países afetados pela crise, e para o Banco Mundial. O presidente do banco, Robert Zoellick, propôs a formação de um fundo para financiar o comércio. Fora disso, será difícil um acordo sobre ação conjunta contra a crise. Seria irrealista esperar um acordo minucioso sobre como ampliar o controle sobre o sistema financeiro, mas o tema servirá de mote, certamente, para muita retórica, e o presidente Lula parece disposto a aproveitar a oportunidade.
Os discursos e conversas da reunião em Doha foram absolutamente inúteis como contribuições para o enfrentamento da crise. Mas serviram para as demonstrações habituais de sudamericanidad. O presidente Lula novamente convocou os emergentes para uma grande aliança, como se isso fizesse algum sentido para os árabes - ainda plenamente imersos no passado político, social e econômico.
O presidente Evo Morales propôs a formação de uma nova Organização das Nações Unidas, mas sem os impérios. O presidente Hugo Chávez falou sobre a crise dos impérios e referiu-se ao "império", no singular, como um tigre de papel e sem dentes. O país onde nasceu a metáfora do tigre de papel se tornou aliado comercial estratégico dos Estados Unidos e segue ideias próprias sobre como se relacionar com o mundo rico.
Lula teve pelo menos um momento de sensatez e seriedade. Foi quando evitou ficar à mesa ao lado do presidente sudanês, Omar al-Bashir, acusado de genocídio e defendido por Chávez. Para levantar-se e sair, não precisou discursar.
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