Política
Demétrio Magnoli De Damasco a Kiev
FOLHA DE S PAULO
A expressão "atores estrangeiros" emergiu dois meses atrás, de porta-vozes do Kremlin e do governo ucraniano. As palavras "extremistas" e "terroristas" começam a ser pronunciadas agora, quando aparecem os primeiros cadáveres em Kiev. Dois manifestantes foram mortos a tiros pela polícia. O corpo de um terceiro ativista, encontrado sem vida numa floresta nos arredores da capital, exibia sinais de tortura. Um estudante de 17 anos sofreu sevícias de policiais, que o espancaram e esfaquearam, obrigando-o a despir-se e cantar o hino nacional sob o frio congelante. "Damasco": o presidente Viktor Yanukovich e seu patrono, Vladimir Putin, inspiram-se no exemplo da Síria, onde Bashar Assad comprovou que a repressão sangrenta de um levante nacional pode permanecer impune. Contudo, para Washington e Bruxelas, o teste de Kiev vale mais, muito mais, que o de Damasco.
No ponto de partida da revolta popular síria, Obama e os líderes europeus avisaram que não ficariam inertes diante dos massacres perpetradas pelo regime. Depois, no ano 1 da guerra civil, prometeram apoiar a corrente moderada da oposição. Quando os compromissos solenes já estavam desmoralizados, o presidente americano traçou sua célebre "linha vermelha", assegurando que reagiria militarmente a um hipotético ataque químico. Assad cruzou, impávido, a última fronteira, demonstrando que o rei estava nu. Ao longo da trajetória, a oposição moderada dissolveu-se na irrelevância, cedendo lugar a organizações fundamentalistas e grupos jihadistas. Putin convenceu-se de que está autorizado a jogar, na Ucrânia, as mesmas cartas utilizadas na Síria. Mas Kiev não é Damasco.
"Quero viver na Europa". Os cartazes exibidos nas cidades ucranianas indicam tanto as fontes quanto os rumos da revolução em curso. A Ucrânia pertenceu, durante séculos, ao Império Russo, e viu frustrada sua primeira independência, que coincidiu com a Revolução Russa mas durou efêmeros quatro anos de guerras sucessivas. Uma segunda independência, propiciada pela implosão da URSS, em 1991, jamais se completou. As manifestações multitudinárias deflagradas em novembro, que retomam a frustrada Revolução Laranja, de 2004, evidenciam a natureza anacrônica da sujeição do país à Grande Rússia. Aos olhos da maioria do povo ucraniano, "Europa" ou "União Europeia" são a tradução geopolítica da exigência de soberania nacional. Eis o motivo pelo qual a aposta de Putin representa um desafio histórico para Washington e Bruxelas.
A legitimidade da União Europeia (UE) não repousa sobre o mercado comum ou, mesmo, a liberdade de circulação dos cidadãos europeus. Desde a Segunda Guerra Mundial, "Europa" é o outro nome das liberdades políticas e da democracia. O projeto europeu surgiu para proteger as liberdades, depois da tempestade do nazismo e diante do espectro triunfante da URSS de Stalin. A UE renovou-se e provou sua vitalidade na década seguinte às revoluções de 1989, pela incorporação dos países do antigo bloco soviético. Kiev não é uma crise qualquer: na Ucrânia, a "Europa" precisa demonstrar que serve a algo maior que os interesses do "mercado".
O Kremlin acusou "atores estrangeiros" de "insuflarem" os protestos na Ucrânia. De fato, em dezembro, a representante diplomática da UE, Catherine Ashton, e o ministro do Exterior alemão, Guido Westerwelle, juntaram-se aos manifestantes da Praça da Independência. Eles estavam dizendo que não são "estrangeiros", que os ucranianos são europeus, que 1989 não terminou e que Kiev não é Damasco. A presença deles equivale a uma nota promissória, que começa a ser cobrada agora. Os EUA e as potências europeias têm os instrumentos para infligir punições diplomáticas e econômicas insuportáveis à Rússia. Se não os utilizarem, permitindo que Kiev se torne Damasco, reduzirão "Europa" a um sinônimo de decadência.
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